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O Neoliberalismo Trouxe à Tona o Pior em Nós

Canary Wharf, centro financeiro e de negócios de Londres (Reino Unido).
Temos a tendência de perceber nossa identidade como estável e bem distinta de fatores externos. Mas depois de dezenas de anos de estudos e pesquisas, me convenci de que a mudança econômica apresenta um efeito profundo não somente sobre nossos valores, mas também sobre nossa personalidade. Trinta anos de neoliberalismo, de mercado livre e privatizações têm deixado um sinal, e o mantra incessante da produção se tornou parte da nossa vida. 

Se você está lendo isso de forma cética, digo simplesmente: a meritocracia neoliberalista favorece alguns traços da personalidade e penaliza os outros. Existem certas características ideais necessárias para que, hoje, se construa uma carreira. A primeira é ser hábil na retórica, com o objetivo de convencer o maior numero de pessoas possíveis. O contato com outras pessoas pode também ser superficial, mas a partir do momento que isso vale para a maior parte das interações entre os humanos dos dias de hoje, isso não será, particularmente, digno de nota. 

É importante saber se vender: conhecer muitas pessoas, possuir bastante experiência e ter alcançado recentemente uma meta importante. No futuro as pessoas se darão conta de que tudo isso era algo exagerado. Mas o fato é que ao início se acreditava que tudo dependia de outro traço da personalidade: conseguir mentir com convicção sem manter o sentimento de culpa. Isso porque raramente assumimos a responsabilidade pelo nosso comportamento. 

Além disso, somos flexíveis e impulsivos, sempre a procura de novos estímulos e batalhas. Isso se transforma em um comportamento de risco, mas não importa, não somos nós que devemos juntar as peças. A fonte de inspiração para toda essa reflexão? A lista de verificação da psicopatia, escrita por Robert Hare, o maior especialista da área na atualidade. 

Essa descrição dos fatos é naturalmente uma caricatura forçada. Todavia, a crise financeira ilustrou os efeitos exercidos, em nível macro social (por exemplo, nos conflitos entre os países da zona do euro), por uma meritocracia neoliberalista sobre a população. 

A solidariedade se transforma em artigo de luxo e cria condições favoráveis para alianças temporárias onde a preocupação principal é sempre a de retirar vantagens maiores quando relativo à concorrência.

As relações sociais com os colegas enfraqueceram, do mesmo modo que a integração emocional junto à organização para a qual se trabalha. 

Antigamente, o bullying era um fenômeno que acontecia somente nas escolas, hoje está presente de forma constante em todos os locais de trabalho. Isso é um sintoma típico dos incompetentes que descarregam suas próprias frustrações em cima dos mais fracos, e que na psicologia é chamado de transferência de agressividade. 

Existe um sentimento de medo latente, que é variável entre a ânsia da apresentação até um medo social que vem da ameaça sentida pelo outro. As constantes avaliações do trabalho causam um declínio em termos de autonomia e uma crescente dependência, cada vez mais marcada, de fatores externos que variam continuamente. O resultado de tudo isso é o que o sociólogo Richard Sennet definiu como a “infantilização dos trabalhadores”. 

Os adultos realizam atitudes infantis, deixando-se levar pelo ciúme por coisas fúteis (“deram uma cadeira nova pro fulano e pra mim não”), contam mentiras, recorrem à enganação, deliciam-se com os erros alheios e fantasiam vinganças. Essa é a consequência de um sistema que impede as pessoas de pensar de modo independente e que não trata os colaboradores como pessoas adultas. 

O que é ainda mais importante, porém, é o sério dano que causa na autoestima das pessoas. A autoestima depende em boa parte do reconhecimento dado por outras pessoas, como foi demonstrado por filósofos importantes como Hegel e Lacan. Sennet chega a uma conclusão semelhante quando reconhece na pergunta “Quem precisa de mim?”, o quesito fundamental que assola o trabalhador atualmente. Para um número crescente de pessoas a resposta é “Ninguém”. 

As empresas declaram constantemente que qualquer pessoa pode fazer tudo desde que esteja duramente empenhado, envolvendo o tudo com a conquista de privilégios, aumentando dessa forma a pressão sobre os seus próprios colaboradores já exaustos. Um número cada vez maior não o faz e acaba sentindo-se culpado, humilhado e mortificado. Fazemos tudo repetidamente e acabamos de uma forma que não existe mais liberdade de escolha dos nossos destinos, mas a liberdade de escolha, além da narrativa do sucesso, e limitada. E como não se bastasse, aqueles que não o fazem são automaticamente classificados como perdedores, aborrecedores e parasitas sociais. 

A meritocracia neoliberalista nos faz crer que o sucesso depende do talento e do empenho do indivíduo, o que significa que a responsabilidade grava exclusivamente nos ombros do trabalhador e que as autoridades devem então permitir a maior liberdade possível para alcançar este objetivo. Para aqueles que creem na fábula da liberdade total de escolha, os conceitos de autogestão e autogoverno são as mensagens políticas mais importantes, especialmente se parecem prometer liberdade. Junto com a ideia do indivíduo perfeito à liberdade que nós ocidentais percebemos é a maior inverdade, ou falsidade, do nosso tempo. 

O sociólogo Zygmunt Bauman resumiu com precisão o paradoxo da atualidade: “Não estamos mais livres. Não somos mais vistos como incapazes”. Somos verdadeiramente mais livres do que éramos antes já que podemos criticar a religião, tirar vantagem de atos laissez-faire ao sexo e sustentar qualquer movimento político de nossa preferência. Podemos fazer qualquer uma dessas, pois nenhuma possui algum significado: este tipo de liberdade parte da indiferença. 

Por outro lado, nossa vida quotidiana se transformou em uma constante batalha contra a burocracia que deixaria até Kafka assustado. Existem regras para todas as coisas, da quantidade de sal que pode ser usado na produção de pães às fazendas urbanas de frangos. A nossa suposta liberdade está ligada imprescindivelmente a uma condição: devemos ter sucesso, ou então fazer qualquer coisa com nós mesmos. Não precisamos olhar longe para encontrar demonstrações disso. Uma pessoa altamente capacitada, especializada, que coloca a família à frente da sua carreira é criticado. Uma pessoa que tem um bom trabalho e recusa uma promoção para dedicar-se a outras coisas é considerado louco, a menos que essas outras atividades não garantam sucesso. Uma jovem que sonha em ser professora primária é aconselhada pelos pais a primeiro conquistar uma pós-graduação em economia. Uma professora primária sabe-se lá o que tem na cabeça? 

São constantes lamentações sobre a suposta perda de regras e valores na nossa cultura. Mas as normas e os valores são parte integrante da nossa identidade. Então não podemos perdê-los, no máximo podemos mudá-los. E isso é precisamente o significado do sucesso. Uma economia modificada reflete uma ética que mudou e gera uma identidade transformada. O sistema econômico atual está fazendo transparecer o que temos de pior.

Por: Paul Verhaeghe (PhD, professor da Ghent University). Tradução: Ivan Pedro Lazzarotto. Artigo publicado no jornal britânico The Guardian.

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