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Transações Naturais

As contribuições dos ecossistemas para a sociedade estão cada vez mais evidentes e começam a demonstrar seu valor, inclusive de troca. 

O pagamento para extrativistas e produtores rurais que adotam práticas de baixo impacto, além dos avanços envolvendo mecanismos que compensam o déficit de áreas naturais obrigatórias por lei nas propriedades rurais, se apresentam como instrumentos eficientes para a conservação com valor econômico. No primeiro modelo, adotado como estratégia de combate do desmatamento, os exemplos mostram resultados capazes de ser replicados em diferentes regiões da Amazônia

A Ponta do Abunã, na tríplice divisa entre Acre, Rondônia e Amazonas, entrou para a história do Brasil no início do século XX como entreposto de borracha e mão de obra extrativista da lendária ferrovia Madeira-Mamoré, na saga do "ouro branco" em meio à Floresta Amazônica. Hoje, o antigo eldorado, sob forte pressão da expansão pecuária, é território de um novo sonho: a construção de um modelo capaz de viabilizar o uso sustentável, com compensação financeira para quem conserva as árvores em pé, ajuda na conservação da biodiversidade e no controle climático do planeta. 

A região representa hoje a principal fronteira de desmatamento da Amazônia. No Projeto de Carbono Reca, desenvolvido pela Natura, pequenos agrossilvicultores da localidade, fornecedores de óleo de andiroba à produção de cosméticos, protagonizaram uma iniciativa-piloto de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) – no caso, pela contribuição ao equilíbrio do clima global via práticas produtivas que não desmatam. "Procurávamos uma fórmula segura a ser replicada na Amazônia para aumentar a renda sem derrubar mais árvores", afirma Keyvan Macedo, gerente de sustentabilidade da empresa. 

Além da agricultura de subsistência e do ganho por meio da venda dos ativos da biodiversidade à indústria, cada família passou a receber R$ 1,6 mil por ano pelo suporte à conservação e uso de boas práticas, após capacitação sobre compromissos, regras e critérios contra o desmatamento. Como diferencial, o método prevê receita adicional em função do resultado coletivo, ou seja, há o incentivo financeiro individual para cada um fazer a sua parte e ainda uma remuneração pela performance do todo, que é destinado à Associação Reca – um modo de estimular os produtores a engajar os vizinhos. 

Na primeira fase, de 2013 a 2015, o projeto desembolsou um total de R$ 2 milhões em pagamentos que, a partir de agora, na segunda etapa, serão anuais. Como resultado, a receita das famílias dobrou em relação à venda do produto extrativista, beneficiando 125 propriedades rurais e diminuindo suas taxas de desmatamento. 

Entre os resultados, a iniciativa ajudou na regularização fundiária, o que é essencial à segurança dos produtores e do próprio projeto. Em mutirões promovidos em conjunto com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), foram emitidos 49 títulos fundiários e 205 inscrições no Cadastro Ambiental Rural (CAR) beneficiando os associados e cooperados do Reca

"Desde 2007 temos na empresa um programa de carbono neutro e, após algum tempo, identificamos a necessidade de evoluir no cálculo para aumentar renda e maximizar impacto social com maior consciência dos produtores sobre os benefícios”, explica o executivo. Nas comunidades da Ponta do Abunã, onde a mata se encontra historicamente fragmentada por pastagens e outros impactos à paisagem natural, foi desenvolvida nova metodologia de PSA aplicável a áreas não contínuas. “Isso representa uma inovação, pois em geral o mecanismo tem sido utilizado no Brasil em maiores extensões de florestas conectadas", explica Macedo

O objetivo no longo prazo é fazer com que a derrubada de árvores nas áreas do projeto seja inferior às do entorno, chegando a zero após 25 anos. Desde 2013, o desmatamento evitado na região foi equivalente a 190 campos de futebol por ano ou 74 mil toneladas de carbono que deixaram de ir para atmosfera. Apesar desses resultados, a adesão ao compromisso de práticas sustentáveis, que alcançou 77% das famílias no Abunã, permanece um desafio contra a expansão do gado. Macedo adverte: "O cobenefício da renda via fornecimento de insumos da natureza à indústria é essencial à viabilidade dos projetos de PSA". 

Pontes entre a floresta e o mercado

Criar modelos de relações comerciais justas e transparentes é chave na tarefa de unir as pontas do mercado, aproximando fornecedores extrativistas e indústrias, para promoção do uso sustentável como estratégia de conservação da biodiversidade. "É crescente o interesse dos compradores em saber a origem dos produtos florestais e a forma como são beneficiados", atesta Mariana Faro, diretora da 100% Amazônia, empresa de comércio internacional que hoje absorve a produção de produtos florestais não madeireiros de oito comunidades para exportação. 

A ênfase na valorização dos territórios, com a consequente manutenção das florestas usadas pelas populações locais como fonte de renda e insumos às empresas, é a alma do negócio. Dessa forma, no intuito de gerar benefícios na perspectiva do ganha-ganha e conciliar a lógica do mercado à do conhecimento tradicional, a empresa tem incentivado a organização social e mobilizado novas práticas no Projeto Aryamuru – nome tupi que significa "a força que vem das mães das mães", ou seja, das avós. 

Junto à Cooperativa de Fruticultores de Abaetetuba (PA), o esforço está no desenvolvimento de métodos de rastrear os produtos desde a extração na floresta, comprovando a origem em áreas regularizadas pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR). Após diagnóstico social e produtivo, o projeto orientou as comunidades a adotar protocolos de relacionamento comercial com empresas, com consentimento prévio e planos de uso dos recursos: açaí, cupuaçu e cajá, entre outros frutos processados em suas unidades industriais. 

O modelo segue a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tradicionais. "Além de qualidade, o mercado exige regularidade, padronização e conhecimento sobre toda a cadeia dos produtos", diz Faro. Na comunidade Monte Herman, em Portel, Ilha do Marajó (PA), a extração de copaíba se dá mediante processos de rastreabilidade que identificam as árvores por GPS e permitem saber de qual delas o óleo comprado teve origem. Mais valorizado, o manejo da espécie pelos produtores com fins comerciais estimula a conservação da floresta, sob constante ameaça dos madeireiros ilegais. 

O acordo firmado pela comunidade para a gestão dos próprios recursos faz o casamento entre o plano de produção local e a demanda das empresas. "Ao mesmo tempo, percebemos uma nova cultura quanto ao lixo, caça e pesca predatória, além da recuperação de áreas degradadas e até mudanças positivas no hábito alimentar", completa Carlos Augusto Ramos, engenheiro florestal do projeto. 

Em Almeirim (PA), o trabalho dá suporte à documentação que comprova o manejo sustentável da castanha-do-brasil, visando o mercado externo. A parceria auxilia as mulheres na produção de artesanato com o ouriço (carapaça) do fruto após a retirada das amêndoas, diversificando opções de renda. Parte da receita alimenta um fundo criado pela comunidade, como capital de giro destinado a investimentos em melhorias locais. "Sob o ponto de vista econômico, é importante não depender de apenas um produto e usar a floresta de forma múltipla", sugere Ramos

O objetivo, diz ele, não se restringe a comercializar produtos com rastreabilidade a partir de frutos e sementes, mas desenvolver o protagonismo das comunidades com base no manejo florestal comunitário e no acesso a mercados, afirmando sua autonomia econômica e seu papel como guardiões da biodiversidade, dos saberes e da cultura amazônica. 

Solução para o déficit de árvores 

Se na Amazônia as vendas prosperam no ritmo da organização social das comunidades e do acesso a mercados, na Mata Atlântica, em São Paulo, novos negócios se desenham na esteira de mecanismos que compensam a falta de reservas ambientais em propriedades rurais já desmatadas, de forma a garantir florestas na proporção imposta pela lei. O novo Código Florestal prevê: dentro de certas condições, quem não tiver mata suficiente para se adequar às exigências pode compensar o déficit pagando para uma outra fazenda com mais áreas conservadas fazer o papel, no mesmo bioma. 

"A vegetação nativa mantida em pé deve ter um valor econômico", ressalta o empresário Leandro Viecili, diretor da Florestec, empresa que ingressou em uma nova fronteira de negócios por meio do projeto Compensação de Passivos Ambientais por meio de Servidão Florestal.


Foto/Divulgação: Florestec.

De início, em 2012, com propósito de resolver o problema de proprietários com insuficiência de área para reserva ambiental, o engenheiro florestal adquiriu um sítio de 73 mil metros quadrados, no município de Piedade (SP). O remanescente florestal da área, que resistiu à pressão imobiliária ao longo das décadas, hoje se destina a compensar passivos ambientais de terceiros, em caráter perpétuo, no conceito de servidão – nesse caso, o serviço prestado por um imóvel para outro. Até o momento, 2 mil metros quadrados da reserva foram negociados para compensações ambientais. 

"A ideia surgiu quando uma transportadora, que veio a se tornar o primeiro cliente, precisava de um imóvel para se adaptar às normas ambientais, mas não queria cuidar dele porque o negócio da empresa era caminhão e não floresta", conta Viecili. A experiência nos meandros do setor, com a percepção de uma tendência que chegava para ficar e poderia se tornar um novo filão, veio quando trabalhava na área de licenciamento da agência ambiental paulista, a Cetesb, e tinha a caneta na mão para autorizar ou não novos empreendimentos. 

Com 16 transações realizadas até a metade de 2018, abrangendo áreas que variam de 630 a 11 mil metros quadrados, a empresa tinha como meta liquidar as cotas disponíveis no terreno e adquirir outro em região diferente, mas esbarrou na crise econômica. A tendência é o negócio crescer na perspectiva de retomada dos novos investimentos em obras que precisarão compensar a falta de floresta para cumprir as normas. Nem sempre a alternativa tradicional de cultivar mudas para resolver o passivo dá certo, não só devido ao alto custo, como também à necessidade de monitoramento e cuidados com o plantio. 

"O olhar é de longo prazo e de atenção para superar períodos de insegurança na área ambiental e econômica, como o atual, sem prejuízos com o custo da manutenção de áreas conservadas para sempre, como prevê os contratos", analisa Viecili, que investiu R$ 70 mil e desde o início do negócio, em 2014, faturou R$ 458 mil. O cliente-padrão, diz ele, é o proprietário que tem lote urbano com floresta e precisa cortar uma parte da vegetação para construir a casa. Mas há diferentes demandas, como indústrias de cerâmica que querem ampliar a produção e precisam de licença de mineração.

Por: Sérgio Adeodato (Página 22).

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