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Saúde e Sustentabilidade: Uma Relação Delicada


A degradação ambiental provoca doenças e mortes, compromete a saúde das gerações futuras e onera o setor de saúde. O caminho para uma mudança sustentável passa pela conscientização dos atores sociais e por uma abordagem intersetorial da saúde, dizem especialistas. 


Há cerca de 40 anos, o médico patologista Paulo Saldiva cumpre uma rotina diária: sai de casa pela manhã com a sua bicicleta e pedala cerca de seis quilômetros até o trabalho. Nos dias de chuva ou frio, uma bicicleta dobrável e um patinete de adulto permitem ao médico associar esses meios alternativos de locomoção com o uso do ônibus. Saldiva é um ciclista convicto em São Paulo (SP), cidade em que o automóvel reina soberano sobre todos os meios de transporte. Sua opção é bem fundamentada e tem um caráter militante.

Atuando como coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Universidade de São Paulo (USP) e renomado pesquisador, o médico conhece como poucos os efeitos nocivos dos poluentes liberados pelos escapamentos dos veículos automotores – os maiores vilões da poluição do ar nas cidades – e faz a sua parte para reduzir as emissões. Os resultados das pesquisas conduzidas por Saldiva de fato impressionam. Somente na cidade de São Paulo, a poluição atmosférica mata cerca de 4 mil pessoas por ano – mais do que a aids, responsável por mil mortes e a tuberculose, que vitima 600 pessoas anualmente. Quando se somam os dados de pessoas na faixa etária de 40 anos das seis maiores capitais do país, os números sobem para 11 mil mortes por ano causadas pela má qualidade do ar. Em escala mundial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), esses números atingem cifras dramáticas: a cada ano, a poluição atmosférica causa 6 milhões de mortes prematuras.

Diferentemente do que se poderia imaginar, os efeitos deletérios da poluição à saúde não se limitam somente a problemas respiratórios, como asma, bronquite e enfisema pulmonar. Um número crescente de pesquisas revela que os poluentes estão relacionados a uma variada gama de doenças, perfazendo uma longa lista que inclui, entre outras, câncer, infertilidade, diabetes, anemia, obesidade, neuropatias e cardiopatias. 

CORAÇÃO, RACIOCÍNIO E MEMÓRIA

Dados da American Heart Association (Sociedade Americana do Coração) mostram que 10% dos infartos de miocárdio devem-se à poluição gerada pelo tráfego de veículos. “Os especialistas precisam levar mais em conta a poluição atmosférica como um fator de risco de doenças cardíacas”, alerta o cardiologista Cláudio Domênico, da Clínica São Vicente (RJ), membro da Sociedade Europeia de Cardiologia. "Durante a gestação têm maiores chances de vir a desenvolver diabetes tipo 2 e obesidade”, informa Saldiva. De maneira geral, fetos com maior contato com a poluição têm menor reserva funcional, o que significa maior vulnerabilidade a doenças ao longo da vida. 

ÔNUS À SAÚDE

Cálculos do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP evidenciam que os custos das doenças causadas pelas emissões de poluentes têm alto impacto no setor de saúde. A estimativa é que cerca de 2 bilhões de reais sejam dispendidos anualmente pelo Sistema Público de Saúde (SUS) em tratamentos
de enfermidades associadas direta ou indiretamente à poluição, consumindo recursos que poderiam ser empregados na melhoria da qualidade da saúde pública. A própria área de saúde é alvo do olhar de organizações ambientais. “Descobriu-se que o setor vivia um enorme paradoxo, emitindo substâncias cancerígenas para o
ambiente”, conta a bióloga argentina Verónica Odriozola, coordenadora regional de Saúde sem Dano, referindo-se ao episódio que, em 1996, motivou a criação dessa organização não governamental nos Estados Unidos. Ao realizar uma pesquisa sobre a presença de dioxinas no ambiente – substâncias que são
subprodutos não intencionais de processos industriais, altamente tóxicas e com comprovada atividade cancerígena –, o governo americano identificou que os incineradores de resíduos hospitalares eram uma de suas principais fontes. 

A partir de então, a ONG se dedicou a promover alternativas à incineração e a buscar maneiras de reduzir a quantidade de resíduos produzidos pelos hospitais. Mais recentemente, a Saúde sem Dano dirigiu o foco de suas atividades para a eliminação do uso do mercúrio no setor de saúde. O metal tem potente ação neurotóxica e nefrotóxica e, como se sabe, é amplamente utilizado em termômetros, medidores de pressão arterial, antissépticos tópicos e material odontológico. O empenho para eliminar o mercúrio no setor de saúde conta com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e tem obtido êxito. No Brasil, a venda de medicamentos à base do metal foi proibida pela Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2001, e o estado de São Paulo determinou a sua eliminação da rede pública de saúde. Vários países baniram o uso do mercúrio no setor de saúde e, em 2013,
espera-se que seja assinado um pacto global pela sua eliminação no mundo todo. 

EPIDEMIAS E AMBIENTE

A degradação ambiental produzida pelo desafio de produzir alimento para 6 bilhões de pessoas no planeta também está nas raízes de epidemias que ameaçam a humanidade, afirmam especialistas como Stefan Cunha Ujvari, infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e autor do livro 'Meio ambiente e Epidemias'. “Quanto mais desmatamos e invadimos as áreas selvagens, mais aproximamos o homem e suas comunidades da porta de entrada de novos vírus”, diz Ujvari. Foi o que ocorreu com
a aids, explica ele. “Originalmente, o HIV era um vírus de um chimpanzé que vivia nas florestas da África, onde esse animal era capturado para servir de alimento. A população entrou em contato com as vísceras e o sangue desses chimpanzés e se infectou.” 

Corrobora essa visão o infectologista Marcos Vinícius da Silva, que dirige a Divisão Científica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (SP). Para ele, muitos dos surtos epidêmicos estão
relacionados a desequilíbrios no ambiente. É o caso da hantavirose, transmitida ao homem por ratos silvestres, animais que têm encontrado na degradação dos ecossistemas originais condições ideais para se reproduzir. “Em áreas de reflorestamento ou cultivo, além de não encontrarem os predadores naturais, como corujas e cobras, os ratos se deparam com uma grande quantidade de sementes, que representa alimentação farta para esses animais”, explica o infectologista.

Dentro da complexidade que permeia as relações entre ambiente e saúde, o caminho em direção à sustentabilidade deverá necessariamente trilhar uma abordagem intersetorial, creem os especialistas. “É preciso compreender que a saúde não cabe mais na área de saúde: abrange também áreas como planejamento urbano, mobilidade, utilização de combustíveis, ocupação do solo, manejo da vegetação e emissão de ruído”, diz Paulo Saldiva. “A saúde precisa aprender a trabalhar com temas transversais”, conclui o cientista. 

O INSUSTENTÁVEL USO DO CARRO DO CARRO

Além de prejudicial ao ambiente e à saúde, o atual modelo de locomoção urbana baseado no automóvel é ineficiente. A melhor política é migrar para o transporte alternativo e coletivo, afirma o médico Paulo Saldiva. “O que temos hoje nas cidades brasileiras é uma política equivocada de transporte, subsidiada com o dinheiro, o tempo e a saúde dos cidadãos”, avalia o especialista nos efeitos da poluição do ar sobre a saúde. Na entrevista a seguir, ele expõe algumas de suas ideias sobre alternativas de transporte no meio urbano. 

- Usar a bicicleta como meio de transporte em cidades como São Paulo é uma atitude sustentável? 

Sim. A maioria dos paulistanos mata um leão por dia, não tem tempo de ir à academia. Então, usar a bicicleta como meio de transporte para o 
trabalho se transforma num bom negócio: além de economizarem nos gastos com a condução, as pessoas têm a oportunidade de se exercitar, o que reduz o risco de desenvolver doenças como obesidade, diabetes, osteoporose e depressão. A economia também é revertida às empresas. O funcionário que usa a bicicleta registra um número menor de intercorrências de saúde, reduzindo seus dias de licença e a utilização de seguro-saúde.

- A vida do ciclista em São Paulo ainda é difícil. Há cidades no Brasil mais amigáveis à bicicleta? 

As cidades brasileiras que investiram a sério em transporte cicloviário, construindo ciclofaixas e estrutura viária adequada, foram bem-sucedidas. Sorocaba, por exemplo, no interior de São Paulo, é um caso de sucesso: 10% da população usa a bicicleta para se locomover. Santos (SP) é outro exemplo,
os moradores elegeram a bicicleta como meio de transporte. A ideia não é eliminar o carro das ruas, mas ter um “plano B”, que inclua um maior uso das bicicletas.

- Os níveis de poluição gerada por veículos automotores no meio urbano estão crescendo?

Esses níveis vinham melhorando, mas começaram a estacionar a partir de 2007. Até então, acreditávamos no que chamo de “abordagem Jetsons”, ou seja, que teríamos energia farta e mobilidade infinita. Isso, obviamente, não aconteceu. A produção de veículos menos poluidores e a adoção da inspeção veicular ajudaram a melhorar, mas o número de veículos novos e principalmente o tempo que os carros ficam parados no trânsito fizeram com que a tendência positiva de redução atingisse um nível de saturação. Hoje, nos movemos na cidade de São Paulo com
maior lentidão do que no tempo dos bandeirantes. Em lombo de mula, Fernão Dias Pais conseguia fazer uma média de 16 km/h. O paulistano, hoje, no seu carro, faz uma média de 8 km/h.

- Qual é a saída sustentável para o tráfego nas cidades?

Não há como abrir mais espaço para os carros, é preciso organizar as coisas de maneira mais eficiente. Um ônibus tira mais ou menos 200 carros da rua. Investindo na qualidade do transporte coletivo, é possível fazer dele a melhor opção para a população e estimular os moradores das cidades a migrarem para esse tipo de transporte. O (Enrique) Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá [Colômbia], é quem tem a melhor frase sobre o assunto: “Cidade rica não é aquela em que o pobre vai trabalhar de carro, mas aquela em que o rico usa o transporte público para ir ao trabalho”.

Fonte: Alice Giraldi | Revista Gerações, Edição Nº 02 (2º Semestre de 2012).

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