Nos parques nacionais de Itatiaia e da Serra dos Órgãos, situados a mais de 2 mil metros de altitude, foram encontradas concentrações de agrotóxicos banidos ou acima do permitido pela União Europeia.
Desta vez, os agrotóxicos foram, literalmente, longe demais. Um estudo inédito publicado em março de 2025 na revista científica Environmental Pollution encontrou um combo de 17 tipos diferentes de veneno a mais de 2 mil metros de altitude, nos parques nacionais Itatiaia e Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Esses campos, que ficam a quilômetros de distância dos monocultivos do agronegócio, são unidades de conservação de proteção integral.
Consideradas até então intocadas, essas áreas são vítimas do efeito deriva. Os achados da pesquisa refletem a necessidade urgente de compreender a magnitude deste fenômeno, responsável por transportar os agrotóxicos, por meio das correntes de ar ou das águas subterrâneas, para locais distantes de onde foram aplicados.
As áreas de contaminação identificadas pela pesquisa estão localizadas acima dos dois mil metros de altitude — um patamar difícil de visualizar no cotidiano. Para efeito de comparação, o Cristo Redentor está a 710 metros acima do nível do mar, enquanto o Pão de Açúcar alcança 396 metros. Ou seja, a presença de agrotóxicos foi detectada em regiões quase três vezes mais elevadas que o principal cartão-postal da capital fluminense. Um ambiente onde a presença humana já é limitada pela natureza, mas onde o impacto químico da atividade agrícola conseguiu chegar.
A partir da análise de três amostras de sedimentos de cada unidade de conservação foram encontrados, no total, seis herbicidas, sete inseticidas, quatro fungicidas e dois acaricidas. Tiveram destaque nas análises o clorpirifós, diazinon e dissulfoton, inseticidas do grupo dos organofosforados.
O clorpirifós, além de ter sido o mais abundante em quatro das seis amostras, foi encontrado em concentração 14.589 vezes acima do nível considerado seguro para organismos aquáticos, como microcrustáceos, algas e peixes. O diazinon, embora detectado em menor quantidade, apresentou níveis até 778 vezes superiores ao limite aceitável. Já o dissulfoton apareceu em concentrações até 347 vezes acima do que é considerado seguro para o meio ambiente.
Cláudio Parente, pesquisador em ecotoxicologia e contaminação ambiental e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), frisa dois aspectos surpreendentes do estudo: a capacidade de locomoção das moléculas e sua persistência no ambiente.
Para ele, “esses sedimentos, além de estarem distantes, possuem matéria orgânica, microrganismos, então, esperava-se que eles [os microrganismos] fizessem biodegradação desses compostos. Mas não. Além de encontrarmos concentrações significativas, nos deparamos com um coquetel de agrotóxicos”.
A descoberta nos parques nacionais brasileiros é feita seis décadas depois dos primeiros alertas sobre os riscos do uso de agrotóxicos. Em 1962, a escritora Rachel Carson publicou o livro Primavera Silenciosa, que denunciou, entre outros problemas, a persistência ambiental de substâncias como o DDT, um inseticida de forte aderência à água.
A obra foi um dos marcos de fundação do movimento ambientalista e motivou o surgimento de uma mobilização global para substituir esses compostos. No Brasil, o uso do DDT foi banido na agricultura em 1985 e no controle de doenças em 2009.
Desde então, surgiram novas moléculas consideradas menos persistentes no ambiente, embora seu uso contínuo ainda represente sérios riscos ecológicos. “O problema é que, como elas estão sempre sendo lançadas no ambiente, a ocorrência delas é permanente. É o que chamamos de substâncias pseudopersistentes”, define Parente. Essa expressão, pseudopersistentes, significa que, mesmo tendo uma vida curta, os agrotóxicos estão sempre presentes no ambiente por conta do uso contínuo. Essa forte aderência tem relação com a frequência e a intensidade de aplicação, e não com alguma característica de sua composição química.
O estudo de Parente reforça um alerta que há anos sensibiliza movimentos sociais e pesquisadores. “Não tem mais regiões protegidas dos agrotóxicos no país”, resume a pesquisadora e integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Karen Friedrich. Na visão dela, a presença de pesticidas em parques nacionais localizados a mais de dois mil metros de altitude é a prova mais clara de que a contaminação se tornou sistêmica e invisível, atravessando fronteiras ambientais e sociais.
“Se em lugares considerados intocados há agrotóxicos, imagine nas regiões onde a exposição é constante e frequente”, adverte Karen. Em territórios agrícolas, onde a pulverização é intensa e cotidiana, os riscos à saúde humana e à biodiversidade se multiplicam, mas a fiscalização ainda é frágil e a vigilância sanitária permanece muito aquém da dimensão real do problema.
Espécies endêmicas em risco
O Parque Nacional do Itatiaia, criado em 1937, é o primeiro do Brasil. É uma unidade de conservação de proteção integral, ou seja, bastante restritiva, e teve a sua extensão ampliada, em 1982, de 11.943 para 28.086 hectares. Ele abrange parte do território dos municípios de Itatiaia e Resende, no Rio de Janeiro, e Itamonte e Bocaina de Minas, em Minas Gerais.
A sua fisionomia é semelhante à dos Andes, situada no Chile, tanto em relação às áreas montanhosas, quanto à presença de grande biodiversidade. O local abriga diversas espécies endêmicas — que só estão presentes em determinada região — de fauna e flora, a exemplo do sapo flamenguinho. Símbolo da biodiversidade da Mata Atlântica, esse anfíbio de dorso preto e barriga vermelha contribui para a cadeia alimentar ao controlar insetos e possui propriedades medicinais nas suas toxinas.
Criado em 30 de novembro de 1939, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso), terceiro mais antigo do país, é uma unidade de conservação destinada a proteger os ecossistemas e a rara biodiversidade da Serra do Mar. Possui 20.024 hectares distribuídos nos municípios serranos de Teresópolis, Petrópolis, Magé e Guapimirim. É importante destacar que algumas das espécies endêmicas desta região sequer foram identificadas.
Coautor do estudo, o pesquisador e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rodrigo Ornellas Meires alerta sobre a toxicidade do clorpirifós. Ele reforça que, à primeira vista, o produto pode não “matar os insetos nessas concentrações ambientais, mas pode causar desorientação”. O problema é que, ao longo de anos, a exposição desses insetos aos agrotóxicos é bioacumulativa, o que significa dizer que as substâncias vão aumentando nos organismos e podem levar à extinção.
Um estudo publicado na revista Environmental Science and Pollution Research revelou que o clorpirifós afeta a capacidade de locomoção de uma larva muito comum em regiões de alta montanha. A substância provoca forte estresse nesses insetos, fazendo com que eles precisem gastar toda a energia tentando combater o mal-estar. Assim, a sua capacidade de deslocamento fica comprometida.
Outro levantamento, publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health, indica que esse inseticida pode influenciar alterações na população de fungos, bactérias e actinomicetos no solo e inibir a mineralização de nitrogênio. Segundo o documento, apenas 1% do clorpirifós aplicado atinge a planta-alvo: o restante penetra no solo. A pesquisa também destaca que esse agrotóxico é facilmente solúvel na água.
Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador em Saúde Pública do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, afirma que as análises de contaminação da vigilância ambiental são pontuais. “Na área ambiental, eu desconheço programas em âmbito nacional que estejam acontecendo. O que você vai encontrar é o que vimos agora: uma pesquisa da UFRJ, que investiga lá por um período e pronto. O ideal é que se fizesse um monitoramento contínuo, já que esta é a única maneira de fazer o enfrentamento com as empresas que atuam nesse campo”, pondera.
“Visivelmente ninguém adoece de repente, a não ser aquele agricultor que recebeu uma carga, uma dose alta de veneno num determinado momento da aplicação, mas a gente está preocupado com a questão crônica.” Em resumo, os efeitos a longo prazo são ignorados.
Para se ter uma ideia, o incentivo ao uso de agrotóxicos no Brasil iniciou na década de 60 e ganhou ênfase nos anos 70, no embalo da “Revolução Verde”. Contudo, apenas em 2012 foi criada a Política Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (PNVSPA). Essa iniciativa tem o objetivo de proteger as populações dos riscos e danos provocados pelos agrotóxicos. Esse descompasso, representado por esse hiato de mais de meio século, perdura.
O serviço de Vigilância no Brasil hoje se divide em três: sanitária, ambiental e saúde do trabalhador. Cabe à vigilância ambiental monitorar e avaliar o impacto do meio ambiente à saúde, aferindo, por exemplo, a qualidade do ar e da água, e os efeitos de queimadas e mudanças climáticas. Suas atuações, segundo fontes ouvidas pela reportagem, são tímidas e não acompanham o ritmo de liberação de pesticidas.
Embora a administração das unidades de conservação federais, como os parques nacionais de Itatiaia e da Serra dos Órgãos, seja responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a fiscalização e o controle do uso de agrotóxicos são compartilhados entre três órgãos federais: o Ibama, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e a Anvisa.
Cada um desses órgãos atua sobre um eixo específico: o Ibama é responsável pelos impactos ambientais, o MAPA supervisiona o uso agronômico e a Anvisa avalia os riscos à saúde humana. Apesar dessa divisão, a presença de pesticidas em áreas de preservação mostra que, na prática, os mecanismos de controle são insuficientes para impedir que essas substâncias atinjam ecossistemas que deveriam estar protegidos.
Durante a apuração desta reportagem, todos os órgãos foram procurados. Mas o que se evidenciou foi uma espécie de jogo de empurra. O Ibama encaminhou o questionamento ao ICMBio; e a Anvisa, por sua vez, sugeriu consulta ao Ibama e ao Ministério da Saúde. Em comum, as respostas mostram que a vigilância ambiental sobre a presença de agrotóxicos em áreas protegidas é um tema sem resposta clara — embora as próprias fontes científicas ouvidas pela reportagem alertem para a gravidade do problema.
O que fica evidente é que a maneira como os agrotóxicos são aprovados no Brasil — a toque de caixa — e a ausência de reavaliações periódicas com base em novos estudos internacionais ampliam ainda mais a vulnerabilidade ambiental e sanitária. Como explicou o pesquisador Cláudio Parente, muitos pesticidas são liberados sem que existam avaliações suficientes sobre seus impactos ecológicos e toxicológicos.
Posteriormente, novos estudos, especialmente na União Europeia, demonstram a periculosidade dessas substâncias, levando ao seu banimento — algo que não encontra eco no processo regulatório brasileiro. Mesmo quando reavaliações são feitas, opta-se frequentemente por manter o registro desses compostos. A contaminação de áreas consideradas intocadas apenas escancara as consequências dessa política permissiva.
Raio-X do Clorpirifós
O clorpirifós é um pesticida muito utilizado. Em 2023, foram comercializadas 6.442 toneladas deste produto no Brasil — mesmo banido em 2020 da Europa e, no ano seguinte, dos Estados Unidos. Nunca é demais destacar que esse último país ostentava até 2007 o posto que, hoje, pertence ao Brasil: maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
Há 24 produtos contendo clorpirifós com uso autorizado no Brasil. Segundo as Monografias autorizadas da Anvisa, o seu uso é comum em cultivos como algodão, amendoim, ervilha, feijão, lentilha, milho, entre outros. Um conjunto de evidências científicas aponta que a exposição humana ao clorpirifós pode estar associada a câncer no cérebro, câncer colorretal, leucemia, sarcoma de tecidos moles, câncer de pulmão, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, asma, respiração com ruído, infertilidade, malformações congênitas, disfunções sexuais, desordem do déficit de atenção e hiperatividade, autismo, atrasos no desenvolvimento, intoxicações agudas severas e neurotoxicidade.
Foram justamente esses estudos que levaram ao banimento em países do Norte. Aqui, em 2021, a Anvisa lançou um edital para revisão do clorpirifós, mas o produto segue sendo utilizado. Claudio Parente frisa que o “Brasil deveria ter um sistema regulatório [de agrotóxicos] mais conservador” – em outras palavras, produtos aprovados há muito tempo, mas banidos na Europa com base em novos estudos, deveriam ser reavaliados com rigor.
Na contramão do que anseia Parente, a aprovação de agrotóxicos no Brasil segue galopante. As flexibilizações adotadas durante o governo Bolsonaro, que levaram à aprovação recorde de 2.182 substâncias, quase 2,5 produtos por dia, no período entre 2019 e 2022, foram mantidas e turbinadas com a aprovação do PL 1459, o famigerado PL do Veneno.
Segundo Karen Friedrich, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a aprovação “alucinada” de produtos tem base em resoluções infralegais instituídas durante a gestão anterior. “A liberação comercial que se sustenta no governo Lula é resultado daquelas aprovações do governo anterior, mas também do fato de o atual não ter enfrentado e derrubado essas normativas”, afirma.
Friedrich lembra que muitas dessas resoluções, editadas por Anvisa e MAPA, continuam vigentes e dão respaldo jurídico à liberação de substâncias com alto potencial tóxico. “Hoje é possível registrar produtos mais tóxicos do que a gente já tem registrado, quer dizer, abre-se o mercado brasileiro para produtos com maior potencial cancerígeno, por exemplo”, alerta.
Em 2023, foram aprovados 557 novos produtos agrotóxicos no Brasil. Em 2024, o número subiu para 664. Em 46% dessas novas autorizações, há pelo menos um ingrediente ativo já banido na União Europeia. A doutora em Ciências e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sônia Hess, explica que todo esse agrotóxico aprovado em ritmo frenético é aplicado em apenas quatro culturas.
“Um total de 79% dos agrotóxicos do Brasil vai parar em apenas quatro culturas: 52% na soja, 10% no milho, 10% na cana e 7% no algodão. Quando dizem que o agro mata fome, é mentira. Pois o humano não come soja, não come milho, isso aí tudo são commodities”, resume.
O cenário dos agrotóxicos ganha, ainda, uma peculiaridade: oito de cada dez produtos aprovados no Brasil nos últimos dois anos têm ao menos um ingrediente ativo produzido pela indústria chinesa. “A nossa dependência da China é visceral, tanto para comprar deles quanto para vender para eles”, resume Hess.
O climatologista Carlos Nobre explica que o recorde de mudanças climáticas no Brasil, nos últimos anos, tem como uma de suas características “o aquecimento dos oceanos, que jogam mais energia na atmosfera”, tornando todos os comportamentos climáticos, como chuvas, seca ou rajadas de vento, mais intensos. “Então, uma das possibilidades concretas é de que essas rajadas de vento, mais fortes e duradouras, possam ter transportado essas substâncias para áreas tão distantes”, explica Nobre.
Ainda segundo o pesquisador, os incêndios, que atingiram grande parte dos biomas brasileiros, também podem contribuir para que essas substâncias acessem áreas intocadas. “[Os incêndios] podem aumentar muito a temperatura, fazer esse calor subir, provocando rajadas de vento, que fazem esse transporte para longas distâncias e vários níveis de altitude”, detalha. O cenário acrescenta uma nuance aos muitos desafios já enfrentados para o controle dos agrotóxicos no Brasil.
Por: Adriana Amâncio e Mariana Rosetti. Fonte: O Joio e O Trigo.