A defesa de que chegou a vez de os emergentes emitirem carbono não se justifica mais. A revolução digital combinada à produtividade das [energias] renováveis mudou o panorama.
É nefasta a defesa, por parte da diplomacia brasileira, de que nas negociações climáticas, os direitos de emissão de gases de efeito estufa devem contabilizar o que cada país lançou na atmosfera desde 1850. Em primeiro lugar, não se justifica responsabilizar alguém por uma ação cujos impactos não eram conhecidos à época em que foi tomada.
O German Advisory Council on Global Change também preconiza uma contabilidade das emissões per capita, levando em conta o passado, mas parte de 1990, momento em que a comunidade científica internacional tornou públicas as evidências de que os gases de efeito estufa eram destrutivos para o sistema climático e de origem antrópica. Além de ser eticamente indefensável, voltar a 1850 é inviabilizar qualquer acordo, pela carência de informações sobre o que se emitia à época.
É preciso reconhecer, claro, a imensa desigualdade na ocupação do espaço carbono global: segundo o último relatório do IPCC, as emissões médias per capita dos países de baixa renda são nove vezes menores que as dos países mais ricos. É, em última análise, sobre a base dessa constatação que se estabeleceu o Protocolo de Kyoto, o único compromisso legalmente vinculante nas negociações climáticas. O problema é que há uma incontornável armadilha em seu arcabouço: ele só atribui metas obrigatórias de redução aos países mais ricos.
A própria ideia de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, que dá conteúdo ao Protocolo de Kyoto, contém uma bomba de efeito retardado que explodiu junto com a ascensão da China a primeiro emissor global. É um dispositivo segundo o qual os países que, ao longo da história, emitiram menos teriam agora o direito de recuperar a perda. É um pouco como se dissessem: chegou a nossa vez. Os resultados só podem ser catastróficos não só globalmente, mas para os próprios países que insistem nesta rota.
Até poucos anos atrás, essa postura poderia ser justificada pela ausência de alternativas. Ampliar a exploração e o uso de fósseis era, de fato, para a maior parte dos países em desenvolvimento, o meio mais barato para acesso à energia. Mas os efeitos combinados da revolução digital e dos ganhos de produtividade das [energias] renováveis (sobretudo solar e eólica) mudam radicalmente esse panorama.
Ray Kurzweil, importante inventor e inovador americano, mostra, no caso da energia solar, que seu crescimento tem sido exponencial. Nos últimos 20 anos, a oferta dobra a cada dois anos. Dobrando mais oito vezes ao longo dos próximos 16 anos, 100% da oferta de energia do planeta poderia ser solar. Ao mesmo tempo, tudo indica que o grande limite das fontes renováveis modernas – a intermitência –, está em vias de ser superado, com a melhoria das condições de armazenamento da energia em baterias.
É o que mostra um relatório recente do Rocky Mountain Institute, com o sugestivo título de Grid Defection, algo como o "abandono da rede". As formas convencionais de geração de energia vão-se tornando economicamente inviáveis. E o que está em jogo não são apenas as usinas movidas a carvão, mas o próprio conceito de geração centralizada com distribuição subsequente (hub-and-spoke, na expressão em inglês).
A organização financeira global UBS prevê que, ainda nesta década, as contas de energia elétrica na Itália, na Alemanha e na Espanha cairão de 20% a 30%, como resultado do aumento da autoprodução de energia. As empresas convencionais de energia na Europa devem perder 50% de seus lucros antes de 2020.
Uma internet da energia
O mais importante é que essas fontes renováveis avançam juntamente com o aumento da conexão em rede. Trabalho recente de consultores da McKinsey mostra que os sistemas centralizados de obtenção e posterior distribuição de energia, implantados de forma generalizada desde Thomas Edison, serão substituídos por redes descentralizadas a partir de dispositivos altamente conectados entre si: uma internet da energia.
Estimular a generalização desse avanço é o maior desafio das duas próximas conferências do clima. Lutar para garantir direitos de emissão aos países em desenvolvimento é insistir num caminho que os afasta dessa fascinante conquista civilizacional, resultante do crescimento da autoprodução de energia sobre bases renováveis. Dois estudos recentes do BNDES mostram que China e Índia estão se preparando para essa mudança, com grandes empresas de atuação global em solar e eólica. Já o Brasil insiste na hidroeletricidade e no petróleo e condena-se a ser importador das tecnologias que hoje estão revolucionando as renováveis. Com o olho em 1850.
Por: Ricardo Abramovay. Professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP.
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