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Junco, Carvalho e Prosperidade

Existem quatro atitudes diante das crescentes dificuldades ambientais. As duas primeiras só se distinguem pelos teores de ingenuidade ou cinismo. E as outras duas, pelos graus de racionalidade e realismo. A primeira consiste em simplesmente rejeitar que tais problemas existam, linha na qual se destacam os negacionistas climáticos ao afirmarem que não há aquecimento global, e que, se houvesse, não seria por influência humana. 

A segunda é exagerar no otimismo tecnológico, esvaziando a preocupação com os problemas ambientais, como se não houvesse dúvida de que eles acabarão sendo inevitavelmente resolvidos por infalíveis avanços das engenharias. 

A terceira, mais prudente e responsável, é a dos ambientalistas que, corretamente, enfatizam a necessidade de mudanças culturais e sociopolíticas, além das técnicas, mas com advertências de um alarmismo que, por suas apreensões apocalípticas, causam cansaço e fastio em vez de engajamentos para mudanças de rota. Muitas vezes, até se parecem com os castigos profetizados na Bíblia por Jeremias, e em certos casos beiram o sado-masoquismo. 

A quarta atitude também recusa o reducionismo tecnológico, mas procura as bases de sua narrativa no avanço dos conhecimentos científicos. Um recente estudo bibliométrico mostra que foi vertiginoso o crescimento da produção científica sobre desenvolvimento sustentável e sustentabilidade entre 2000 e 2010. E destaca a importância do que vem sendo chamado de sustainability science, também título de um periódico criado em 2006. Com apenas 21 edições, ainda é uma gota no oceano. Mas a tendência é que, aos poucos, reduza as influências das outras três atitudes. 

Na vanguarda dessa quarta tendência estão os 50 intelectuais que lançaram no início de 2010 a revista Solutions (www.thesolutionsjournal.com), um híbrido de periódico científico (com peer-review) e publicação popular, como se fosse uma espécie de pororoca entre Nature e New Yorker. São os dois editores-chefe dessa revista - Robert Costanza e Ida Kubiszewski, professores da Universidade Nacional da Austrália - que acabam de lançar o instigante Creating a Sustainable and Desirable Future

A ambição dessa coletânea é buscar consenso sobre uma nova visão comum de prosperidade, que, ao expandir liberdades e reduzir desigualdades, também respeite as condicionantes biogeofísicas do sistema Terra. Seus quatro capítulos introdutórios procuram explicar os porquês da necessidade dessa visão, assim como as virtudes dos esforços futuristas. Os blocos intermediários reúnem duas dezenas de exercícios desse tipo, nos quais se tenta "descrever" o que seria um futuro desejável, principalmente com visitas virtuais à situação mundial e de alguns países por volta de 2050. As outras duas dezenas de capítulos, que formam a quarta parte, voltam-se ao "como se chegar lá" (getting there). 

Dos 45 autores que contribuíram para esses 46 enxutos capítulos, apenas um, Brian Walker, também foi convidado a participar do livro Turbulence, primeira sistematização das reflexões conjuntas de dez das maiores empresas do mundo, que se articularam, no início de 2012, em Davos (Suíça), para que fosse criada a Resilience Action Initiative (RAI). 

Além de pesquisador em três das mais importantes organizações científicas da área socioambiental - The Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), Beijer Institute for Ecological Economics e Stockholm Resilience Centre - Walker é o atual presidente do conselho da Resilience Alliance (www.resalliance.org), a rede global que congrega principalmente cientistas para os quais a resiliência dos sistemas socioecológicos deve ser considerada base para a sustentabilidade

O que mais aproxima livros tão diferentes é, portanto, essa ideia-chave de "resiliência", que por séculos ficou confinada às engenharias (principalmente naval), mas que há 40 anos foi simultaneamente adotada por ecólogos (1973) e psicólogos (1974) para designar, grosso modo, capacidade de recuperação sistêmica pós-choques, ou capacidade de absorção de choques e subsequente reorganização para funcionar como antes. 

A proposta é de prosperidade, com mais liberdade, menos desigualdade e respeito pelas condicionantes do sistema Terra. Hoje são os psicólogos que explicam essa noção da forma mais amigável: "dar a volta por cima", diz a jornalista Chris Bueno, em ótimo texto disponível na UOL. Pessoas resilientes são as que enfrentam as adversidades, conseguindo delas se beneficiar para aprender e amadurecer emocionalmente. Pessoas que mostram a habilidade de superar crises, traumas, ou perdas, tornando-os oportunidades positivas de transformação. Nada a ver, portanto, com "resistência", pois resistente é quem "segura as pontas" em situações de pressão, em vez de mostrar flexibilidade para se adaptar e criatividade para tocar adiante. 

Para os ecólogos, resiliência é a "capacidade de um sistema absorver perturbação e reorganizar-se, mantendo essencialmente a mesma função, estrutura e feedbacks, de modo a conservar a identidade". Mas Walker também acha razoável a definição menos formal de "capacidade de se lidar com choques para manter funcionamento sem grandes alterações". Pode-se acrescentar a metáfora didática da fábula em que La Fontaine elogia a superioridade do flexível junco ao compará-lo ao rígido carvalho. O discurso dos psicólogos é mais nítido porque têm como referência um sistema bem definido: o ser humano. Na ecologia, se já não é fácil delimitar um ecossistema, o que dizer, então, desses sistemas "socioecológicos", objeto das pesquisas da Resilience Alliance

O fato é que, conforme a utilidade dessa ideia-chave foi se firmando, também virou coqueluche na retórica sobre o desenvolvimento, o que é ilustrado por dois exemplos bem atuais: a sede do município paulista Águas da Prata é destaque na campanha global Construindo Cidades Resilientes, iniciativa do Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres; e o título do Relatório do Desenvolvimento Humano de 2014 é Sustentar o progresso humano: reduzir as vulnerabilidades e reforçar a resiliência

Daí a importância de se chamar a atenção para as contribuições de Walker aos dois livros aqui recomendados, assim como para um breve artigo que está disponibilizado em português no Project Syndicate. Nos três, assim como nos livros em coautoria com David Salt (2006, 2012), Walker adverte para certas discrepâncias que tendem a surgir entre o conceito científico e as versões que vão se insinuando nas práticas das empresas, do terceiro setor, dos governos e de organizações internacionais. 

Antes de tudo, resiliência não é algo que possa ser sempre considerado positivo. Walker faz alusão a ditaduras e a paisagens salinas, por exemplo, sistemas cuja resiliência precisa é ser combatida. Podem ser acrescentados casos como o das redes de traficantes de cocaína, ou dos vulcões, cujas lavas acabam com qualquer tipo de vida nas redondezas e cujas repercussões atmosféricas podem causar desastres até em outros continentes. Quatro exemplos em que mudanças positivas resultariam de redução de resiliência, e não do contrário. 

Também não se pode entender e manejar a resiliência em uma única escala, pois são justamente as conexões entre diversas facetas que a determinam. Mais: é frequente que uma perda de resiliência se deva a consequências indesejadas da busca do que poderia ser ótimo, mas com foco estreito. É o que ocorre quando é privilegiada a "eficiência", principal gancho do livro Turbulence, justamente voltado para essa tensão que ela mantém com a resiliência. 

Feitos esses alertas, Walker passa a expor as lições de sua longa dedicação ao trabalho coletivo de recuperação de uma grande bacia hidrográfica australiana, a Murray Darling, para explicar as principais dificuldades práticas de ações que sejam coerentes com rigorosa abordagem da resiliência. 

Para começar, é preciso que a coletividade envolvida chegue a uma descrição comum do sistema do qual pretende cuidar. E não é nada fácil obter consensos sobre o que está dentro ou fora de um sistema socioambiental, sobre como ele funciona e sobre o que realmente é importante. Em seguida, os atores-chave também precisam obter ao menos três acordos: sobre as escalas-críticas de funcionamento desse sistema, sobre as escalas temporais e sobre o que é mais valorizado pelos envolvidos. Ou seja, responder à pergunta "resiliência do quê?" 

Se tiverem sucesso nesses primeiros passos, certamente emergirá consciência coletiva sobre as duas advertências feitas mais acima, e também ficará claro que existem sempre de três a cinco variáveis críticas de controle das coisas que realmente importam. Depois, conforme for evoluindo a descrição do sistema (que nunca chega a uma versão completa, final ou definitiva), certamente serão identificados seus limiares de comportamento, que precisarão ser evitados por capacidade adaptativa, ou superados por transformação, caso a continuidade tenha deixado de ser possível. 

Nesse ponto, Walker enfatiza que é frequente e perigoso o engano de se imaginar que resiliência seja equivalente a não mudar, confundindo-a com estabilidade. Ao contrário, tentativas de impedir que os distúrbios ocorram, para que o sistema fique constante, invariavelmente acabam por reduzir sua resiliência. Fica fácil entender, então, por que o editor de Turbulence, Roland Kupers (físico teórico holandês que se tornou consultor em complexidade após longa experiência como executivo: dez anos na Royal Dutch Shell, e outros dez na AT&T) escolheu Walker para redigir justamente o epílogo de uma obra cujo "leitmotiv" é: transformações não são possíveis sem uma visão compartilhada do futuro que molde as ações do presente. 

As corporações que criaram a RAI garantem ter percebido a necessidade de distinguir resultados sistêmicos de resultados empresariais, principalmente no âmbito das relações entre energia, água, alimentos e clima, que elas chamam de stress nexus. É frequente e perigoso o equívoco de que resiliência equivale a não mudar, como se fosse o mesmo que estabilidade, adverte Brian Walker

Também fica óbvio por que, no livro Creating a Sustainable and Desirable Future, as lições tiradas da profícua experiência de Walker entraram no bloco dedicado ao "como chegar lá" (getting there). Afinal, o futuro estará tão mais próximo de uma condição sustentável e desejável quanto mais for possível impedir a irreversibilidade do declínio de ecossistemas dos quais mais dependem as sociedades humanas. O que só poderá ocorrer se os atuais usos dos recursos da biosfera passarem a ser mirados com as lentes da resiliência. 

Por isso, as nove contribuições de executivos de grandes corporações que formam o miolo do livro Turbulence constituem um ótimo sinal, pois, mesmo sendo muito mais voltadas à prática do que a discussões teóricas, todas mostram bom domínio do conceito. Não explicitam, contudo, se realmente concordam com a proposta da aliança presidida por Walker, de considerar a pesquisa sobre resiliência como "base" para a sustentabilidade. O único que aborda essa questão é o próprio organizador, Roland Kupers, que discorda. Chega a perguntar qual das duas - resiliência ou sustentabilidade - seria "o melhor conceito", para em seguida dizer que, pessoalmente, sempre preferiu o primeiro, pois acha que é o mais apropriado para aprofundar o conhecimento. 

Ora, esse é um tique recorrente entre os que não percebem que sustentabilidade não é conceito, mas sim um valor, como é, por exemplo, a justiça. Quando se aponta algo injusto, costuma ser fácil obter consenso, e até unanimidade. Mas isso jamais levará a uma definição sobre o que é a justiça. Quem tiver alguma dúvida precisa examinar o debate filosófico em que se destacam as obras de John Rawls e de Amartya Sen. E refletir sobre todos os outros valores que estão na Declaração dos Direitos Humanos, a começar pela liberdade ou pela igualdade. 

Ignorar essa crucial diferença entre valores e conceitos nem chega a ser, contudo, o principal deslize dos que pensam como Kupers. Bem pior é o erro de avaliação histórica, pois nos 35 anos que se passaram desde que o projeto de um desenvolvimento sustentável começou a inspirar a estratégia mundial de conservação (IUCN-UNEP-WWF, 1980), ou mesmo uma nova utopia política (Lester Brown, 1981), a sustentabilidade não cessou de ganhar força social, como escancara o atual debate sobre os ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável) que serão adotados pela Assembleia Geral da ONU para susbstituir os ODM (objetivos de desenvolvimento do milênio), no âmbito do que foi batizado de Agenda Pós-2015

Diante de tão singular fenômeno histórico, chega a ser assustador o ingênuo reducionismo que pretende abordar a questão pelo seu lado semântico. Mesmo que, hipoteticamente, o termo resiliência fosse mais adequado, é incrível que se despreze a relevância política do processo de superação cognitiva do catastrofismo de ecólogos pioneiros, como Garret Hardin ou Paul Ehrlich, raiz do atual discurso [apocalíptico] tipo "Jeremias". O uso do termo "sustentável" para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a possibilidade e a esperança de que o progresso humano poderá se relacionar com a biosfera de modo a evitar os medonhos colapsos profetizados nos anos 1970. 

Na essência, sustentabilidade é um valor incompatível com a ideia de que o desastre só estaria sendo adiado, ou com qualquer tipo de dúvida sobre a real possibilidade de expansão das liberdades humanas. Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica, na qual transformação e adaptação são inevitáveis, mas dependem de elevada consciência, sóbria precaução, além de efetiva responsabilidade diante dos riscos e das incertezas. 

Já a resiliência - esta sim um conceito científico - tem sido entendida como um dos principais vetores da sustentabilidade. Isto é, um dos meios de se procurar atingir tal fim. Aliás, em abrangente estudo publicado em 2013 pelo National Research Council (2013), uma comissão de 13 renomados pesquisadores, coordenada pelo professor Thomas Graedel (Yale, ecologia industrial) apresentou a resiliência como o terceiro dos quatro clusters mais determinantes da sustentabilidade. Não poderia haver melhor "prova dos nove".

Por: José Eli da Veiga (EcoD).

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