Problemas ambientais e sua interface com a saúde estão sempre presentes nos discursos e práticas sanitárias. Em meados do século XIX, com os intensos impactos do processo de industrialização e urbanização sobre as condições sanitárias e de saúde, esses problemas são vistos como resultados de processos políticos e sociais. Mas com o paradigma microbiano essa relação foi reduzida aos problemas de saneamento e a controle de vetores. A dimensão social e política passa a ocupar lugar marginal e periférico. Para os movimentos ambientalistas e a medicina social latino-americana a noção de problemas ambientais e de problemas de saúde é ampliada.
Apesar dos avanços, a análise de dados sobre grupos de pesquisa, a produção de teses e dissertações e a publicação de artigos científicos revelam que o campo da saúde coletiva ocupa um papel marginal na pesquisa sobre o tema problemas ambientais, e a pesquisa e a produção das ciências sociais respondem por uma parcela muito pequena. O quadro atual impõe a necessidade de se avançar quantitativa e qualitativamente na pesquisa e produção científica da saúde coletiva sendo urgente no que se refere às ciências sociais e, particularmente, nas ciências sociais em saúde.
A noção de problemas ambientais não só permite uma maior incorporação das ciências sociais para a sua compreensão e resolução, mas se encontra mais em consonância com o projeto da saúde coletiva. Essa noção permite considerar que no projeto da saúde coletiva não só a saúde surge como uma conquista social e um direito universal associados à qualidade e à proteção da vida, mas também o ambiente. Nesta perspectiva, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia para a compreensão dos problemas ambientais, que são simultaneamente problemas de saúde, deverá estar ao serviço do sentido social, político e de direito universal, o que inclui a equidade [Minayo, 1997].
A preocupação com os efeitos na saúde provocados pelas condições ambientais é evidente desde a Antiguidade, envolvendo problemas tais como os efeitos do clima no balanço dos humores do corpo, os miasmas, as sujeiras e os odores. Assim, sempre esteve presente nos diferentes discursos e práticas sanitárias que se constituíram como respostas sociais às necessidades e aos problemas de saúde. Essa preocupação parece se acentuar particularmente entre meados do século XVIII e meados do século XIX, quando os problemas ambientais sobre a saúde estiveram associados aos efeitos do rápido e intenso processo de industrialização e urbanização que passaram a incidir nas condições de vida e trabalho.
Nesse período, as preocupações e estratégias sanitárias tinham por base a teoria dos miasmas, para a qual as sujeiras externas e os odores detectáveis deveriam ser reduzidos ou eliminados para deter a disseminação das doenças. A higiene é introduzida como uma estratégia de saúde para as populações, envolvendo a vigilância e o controle dos espaços urbanos (ruas, habitações, locais de lixos, sujeiras e toxicidade) e grupos populacionais (pobres, minorias étnicas e as classes trabalhadoras) considerados sujos e perigosos. O ambiente das cidades era identificado como "objeto medicalizável", havendo a tendência de se patologizar determinadas regiões e lugares, que, habitados pelos pobres, minorias étnicas e classes trabalhadoras, deveriam ser evitados pelos "cidadãos decentes" (burguesia) [Petersen & Lupton, 1996].
Entre meados e o final do século XIX são bastante intensos os impactos da Revolução Industrial sobre as condições de vida e saúde das populações. Principalmente nos países europeus, onde houve maior desenvolvimento nas relações industriais de produção (Inglaterra, França e Alemanha), ocorreu também uma maior organização das classes trabalhadoras, com o aumento da sua participação política. Os temas relativos à saúde são incorporados na pauta das reivindicações dos movimentos sociais e surgem propostas de compreensão da crise sanitária como fundamentalmente um processo político e social, recebendo a denominação de medicina social. Ao contrário do higienismo para o qual o ambiente era um objeto "medicalizável" através de um conjunto de normatizações e preceitos a serem seguidos e aplicados no âmbito individual, a participação política é concebida como principal estratégia de transformação da realidade de saúde [Paim & Almeida Filho, 1998].
Desbaratado no plano político o movimento da medicina social, estrutura-se - principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos -, o movimento do sanitarismo como uma resposta estreitamente integrada à ação do Estado no âmbito da saúde. [Paim & Almeida Filho, 1998] O discurso e a prática dos sanitaristas sobre os problemas de saúde eram fundamentalmente baseados na aplicação de tecnologia e em princípios de organização racional para a expansão das atividades profiláticas [prevenção contra enfermidades], destinadas principalmente aos pobres e setores excluídos da população. No que se refere aos problemas ambientais, o saneamento e o controle de vetores constituíram a principal estratégia desse movimento, direcionada para o controle de doenças relacionadas às precárias condições sanitárias [Gochefeld & Goldstein, 1999].
O advento do paradigma microbiano nas ciências básicas da saúde representou um grande reforço a este movimento que, tornado hegemônico e batizado de saúde pública, reorienta as diretrizes dos discursos e das práticas ocidentais no campo da saúde social [Paim & Almeida Filho, 1998]. Com o paradigma microbiano, o ambiente de foco dos discursos e das práticas da saúde pública é o doméstico, que deveria ser purificado, limpo e areado, sendo isto considerado vital para a saúde dos seus habitantes, particularmente as crianças [Petersen & Lupton, 1996].
A ampliação da compreensão dos problemas ambientais como não somente restritos aos aspectos de saneamento e controle de vetores, bem como a recuperação da dimensão política e social dos mesmos pode, em grande parte, ser atribuída às questões que passaram a ser colocadas pelo movimento ambientalista, que, definido como tal, tem sua existência identificada desde os anos 1950, passando a ganhar força somente nos anos 60 e 70. As ameaças e os perigos ambientais para a saúde pública, provocadas principalmente pela poluição química e radioativa, são compreendidas como de maior escala, tendo se multiplicado e estendido no espaço – indo além dos ambientes locais da casa, da vila ou da cidade – e no tempo – com o alcance dos efeitos futuros sobre a saúde e a vida no planeta [Petersen & Lupton, 1996].
A partir dos últimos 25 anos do século XX, a preocupação com os problemas ambientais tornou-se proeminente em muitos países e resultou em duas grandes conferências mundiais sobre o tema, organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), a de Estocolmo em 1972 e a do Rio de Janeiro em 1992. Em paralelo, emerge uma Nova Saúde Pública (NSP) que tem como estratégia mudar o foco das práticas centradas principalmente nos aspectos biomédicos da atenção para uma compreensão preventiva do estado de saúde, passando a direcionar muita de sua atenção para as dimensões ambientais da saúde [Petersen & Lupton, 1996]. Emblemáticos deste processo são: Relatório Lalonde em 1974, que define as bases para o movimento de Promoção da Saúde e em que são incorporadas questões como a criação de ambientes favoráveis à saúde; o Projeto Cidades Saudáveis lançado em 1986 pela Organização Mundial da Saúde; a definição na Agenda 21 da saúde ambiental como prioridade social para a promoção da saúde.
[Minayo et al., 1999] No Brasil, a preocupação com os problemas ambientais, as características socioeconômicas do desenvolvimento e a interface de ambos com a saúde coletiva pode ser situada desde o início do século XX, através do trabalho pioneiro de Oswaldo Cruz (foto) e dos sanitaristas que o seguiram. Embora mais voltados para a problemática na Fundação Oswaldo Cruz, os autores identificam três paradigmas básicos presentes nos estudos sobre a interface entre problemas ambientais e saúde, sendo estes: o biomédico, com origens na parasitologia clássica; o da relação saneamento-ambiente, com origens no saneamento clássico; o da medicina social, que tem suas origens nos anos 1970 e é a referência para a saúde coletiva.
Por: Carlos Machado de Freitas; do artigo Problemas Ambientais, Saúde Coletiva e Ciências Sociais (2003).
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