Em Acra, capital de Gana, acumulam-se os detritos tecnológicos do mundo rico. Os moradores vivem da coleta de computadores, DVDs, celulares, etc. Ganham de 20 centavos a 10 dólares por dia. Doze mil quilômetros separam Acra do Vale do Silício, Califórnia, Estados Unidos, centro da revolução tecnológica do século XXI. Há, no entanto, outra distância maior do que a geográfica. Acra e o Vale do Silício estão no extremo de um ciclo de vida. Computadores, tablets e celulares que nascem da cabeça de nerds sob o sol californiano e morrem e são descompostos no distrito de Agbogbloshie, periferia africana.
Densamente povoada por migrantes do norte do país e por imigrantes da Costa do Marfim, do Togo e de Burkina Fasso, Agbogbloshie carece de infraestrutura. Não há saneamento básico, pavimentação nas ruas ou áreas de lazer. Restos de madeira, plástico e metal formam a precária estrutura das casas. Nada mais parecido com qualquer favela de qualquer país pobre do mundo, não fosse um fato: um certo toque de ficção científica acrescentado à paisagem pelas montanhas de carcaças de computadores, tevês, fotocopiadoras, DVDs e celulares, como em uma aventura distópica de Philip K. Dick. Os “cadáveres” chegam diariamente em caminhões vindos da região portuária da cidade e transformam Agbogbloshie em um dos maiores lixões de eletroeletrônicos do planeta.
O cemitério permitiu o florescimento de um mercado paralelo e informal. Mais de 30 mil africanos de diferentes idades, crianças incluídas, ocupam-se de duas atividades, do conserto e venda de eletrônicos que ainda podem ser recuperados ou da extração de metais valiosos do entulho, entre eles prata, aço e cobre.
O rendimento do trabalho varia. Segundo Titi, taxista que durante três anos coletou minérios no lixão, o ganho médio diário oscila de 20 centavos a 10 dólares. A jornada de trabalho chega a 13 horas por dia, 7 dias por semana. No outro lado do mundo, no Vale do Silício, as fortunas acumulam-se em nanossegundos. De acordo com a revista Forbes, no último ano a fortuna de Bill Gates, fundador da Microsoft, aumentou em 3 bilhões de dólares, número que provavelmente os catadores do lixão ganense seriam incapazes de calcular.
Expostos a diversos tipos de riscos e doenças associadas ao lixo eletroeletrônico, os trabalhadores executam as atividades desprovidos de equipamentos de proteção, e muitos trabalham sem camisa e descalços. O maior risco vem da inalação de substâncias tóxicas que derivam da queima de fios de plástico, técnica utilizada para extrair o minério de cobre em seu interior. Além de interferir na saúde respiratória dos trabalhadores, a queima de lixo eletrônico contamina alimentos comercializados nos mercados da região, pois a fumaça carrega diferentes metais pesados, além do dióxido de carbono, facilmente depositados nas cascas de frutas e verduras expostas ao ar livre.
O cheiro de Agbogbloshie é indescritivelmente forte e ácido. O calor e a umidade não aliviam a sensação. Sem o menor sinal de vida, o Rio Odaw, que corta o lixão, lentamente carrega pedaços de plástico e de metal dispensados pelos trabalhadores, em uma versão piorada do Tietê paulistano. Cachorros e vacas famintos em busca das escassas gramas e de restos de comida dividem o espaço com os trabalhadores, enquanto as crianças jogam futebol com bolas improvisadas de isopor.
A maioria das carcaças eletrônicas de Agbogbloshie chega da Europa e da América do Norte. Sua liberação nos portos de Gana justifica-se por acordos comerciais cujo propósito, em tese, é ampliar o acesso da tecnologia aos desfavorecidos em países subdesenvolvidos. Em outras palavras, um europeu dono de um computador velho em casa, quebrado ou não, pode enviar o equipamento a algum país africano baseado no altruísta objetivo de propiciar acesso ao “mundo digital” a negros e mulatos pobres das periferias. É uma dupla limpeza: da casa propriamente dita e da consciência.
Apesar de veementemente condenado pela Convenção da Basileia, realizada em 1989, na Suíça, o fluxo de lixo eletrônico continua intenso, de modo que os lixões eletroeletrônicos se espalham por outros países africanos (Egito, Nigéria e Quênia já têm os seus) e na Ásia (incluídos os emergentes Índia e China).
O governo de Gana tenta organizar os trabalhadores em cooperativas, mas a miséria e a ignorância predominam no cemitério de Agbogbloshie e dificultam as iniciativas. O objetivo é sobreviver. Se esse fosse o texto de um programa do National Geographic Channel, o locutor encerraria: “E assim a vida se renova (no mundo digital)”.
Por: Kauê Lopes (CartaCapital).
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