Estação Gare de Lyon (Paris). |
O tempo das constatações ficou para trás. Alarmes econômicos e ambientais já cumpriram o seu papel: chegou a hora de ajustar os ponteiros da cooperação internacional para uma ação transformadora. Vivemos uma transição de ciclo econômico. A correlação entre as escolhas do desenvolvimento e o manejo sustentável dos recursos naturais incorporou-se à pauta das nações. É através dela que todas as demais prioridades poderão respirar; sem contemplá-la, definharão.
Esse discernimento é indispensável para enxergar melhor a oportunidade e a relevância de três eventos agendados para este segundo semestre de 2015.
Em setembro, representantes de todo o planeta reúnem-se na ONU [em Nova York] para aprovar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que sucederão os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
Essa não é uma mera mudança de siglas. Os ODM foram em grande medida uma criação das organizações internacionais impostas "top-down" aos países em desenvolvimento. Agora, com os ODS, vemos um processo inverso em marcha: os países membros do Sistema ONU, desenvolvidos e em desenvolvimento, tomaram a liderança em definir o "futuro que queremos", como sugeria o título do documento final da Rio+20 que deu origem a tais metas.
Em dezembro, será a vez da Conferência do Clima, que acontece em Paris. A chamada CoP21 tem a missão de pactuar um novo consenso global para evitar um aquecimento da terra superior a 2ºC até o final do século. Nesta ocasião, os compromissos concretos já assumidos por vários países esboçam o cenário de uma conferência que promete ir além de declarações superficiais.
Não estamos diante de um calendário protocolar. As reuniões de setembro e dezembro derivam e convergem para um mesmo fio condutor: o desafio do meio ambiente e o da pobreza são parte de uma mesma crise. Novas formas de viver e de produzir cobram seu espaço nas metas que serão consagradas na ONU, em setembro e, três meses depois, nos compromissos para o clima, em Paris. A consciência da travessia só se transformará em ação consequente, porém, se a cooperação internacional providenciar os recursos necessários.
Entra aí o terceiro pilar deste ano decisivo: a Conferência da ONU sobre Financiamento ao Desenvolvimento, que ocorre em Adis Abeba [na Etiópia] em julho. Anterior às edições de Nova York e Paris, menos midiática, mas não menos importante – na verdade, crucial – a reunião na capital etíope desafia as nações a firmarem um acordo para compartilhar a conta global do combate à fome e à pobreza extrema, do desenvolvimento sustentável, da adaptação à mudança climática e da transição para modelos de produção menos destrutivos.
Trata-se de harmonizar três imperativos: o crescimento equilibrado; o crescimento inclusivo e o crescimento sem fome. Um resultado prático poderá ser a inclusão dos mais pobres nos orçamentos nacionais dos países que definirem o combate à fome e à miséria como suas prioridades políticas.
Nos últimos 70 anos, a população mundial triplicou; a oferta per capita de comida quase duplicou. O número de pessoas com fome caiu em mais de 210 milhões desde 1990; a proporção dos que passam fome recuou cerca de 40%.
É possível – é imperativo – ir além: 800 milhões ainda vivem sob o torniquete da insegurança alimentar. Ao mesmo tempo, taxas de obesidade sobem em todo o planeta, na evidência incontornável de que a segurança alimentar adequada deixou de significar apenas a garantia mínima de calorias. Cada vez mais ela abarcará também o cuidado com a qualidade da dieta humana.
A abundância ao lado da fome reitera, sobretudo, a persistência de desafios de distribuição e acesso que extrapolam a questão agrícola.
Definitivamente, essa não é uma questão técnica. O ferrolho que comprime o passo seguinte do nosso tempo é de outra ordem. Destravá-lo implica uma coordenação cooperativa dos recursos para o desenvolvimento sustentável.
Trata-se, entre outras coisas, de dar ao desenvolvimento reprimido, à terra ociosa, ao trabalho subutilizado, o emprego, o crédito, a renda e os recursos tecnológicos necessários à superação da lógica movediça da crise mundial. Mais que nunca está claro, trata-se de uma crise fruto do desemprego e da desigualdade crescentes, e de uma saturação física no uso dos recursos que formam as bases da vida na terra.
A FAO se preparou para fazer a sua parte nessa travessia. Equipes e recursos reforçaram a nossa presença nos países e regiões que mais precisam de apoio nessa transição.
Remanejamentos de quadros e de orçamento foram implementados para torná-la um centro irradiador de inteligência com os pés ancorados nas frentes da universalização da segurança alimentar, da produção sustentável, da valorização dos agricultores familiares, da inclusão social, e da resiliência às mudanças climáticas.
Interliga-se a essas diretrizes o desafio de incorporar 500 milhões de propriedades familiares ao novo padrão de crescimento do século 21, de modo a reforçar a segurança alimentar ali onde, paradoxalmente, ela é mais frágil: 75% da fome hoje concentra-se na área rural. Não estamos falando de boas intenções, mas de urgências dotadas de lastro social, político e tecnológico.
Há uma década, erradicar a fome no Brasil era considerado uma agenda utópica. O país provou que isso era possível e saiu do mapa da fome. Mundo afora, 72 de 129 nações em desenvolvimento monitoradas pela FAO alcançaram o desempenho previsto nos ODM de reduzir a proporção de pessoas subnutridas a menos da metade.
Podemos ser a primeira geração Fome Zero, consolidando o passo indispensável a um desenvolvimento equilibrado e inclusivo. É isso que os ponteiros da urgência e da oportunidade estão a nos dizer: chegou a hora.
Por: José Graziano da Silva. Diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
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