Na floresta tropical, as partículas de poluição emitidas pelas cidades afetam substancialmente a formação de tempestades. Partículas de aerossol são essenciais no processo de formação de nuvens – Foto: GOAmazon e Projeto CHUVA.
Um estudo divulgado no dia 25 de janeiro de 2018 na revista Science revelou como a presença atmosférica de partículas ultrafinas de aerossol – aquelas com diâmetro menor do que 50 nanômetros (ou bilionésimos de metro) – pode intensificar o processo de formação de nuvens e também as chuvas que caem sobre a região amazônica.
De acordo com os autores do artigo, sempre se acreditou que essas nanopartículas tinham papel desprezível na regulação do ciclo hidrológico – o que, de fato, é verdade em regiões continentais poluídas, como as cidades europeias, norte-americanas ou mesmo São Paulo. Na Amazônia, porém, seu papel é diferente.
“A descoberta permite compreender melhor como a poluição urbana afeta os processos relacionados à formação de tempestades convectivas na Amazônia e deve aumentar a acuidade dos modelos climáticos e de previsão do tempo”, disse Luiz Augusto Toledo Machado, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coautor do estudo.
A investigação teve início em 2014 e foi conduzida no âmbito da campanha científica Green Ocean Amazon (GOAmazon).
O apoio da Fapesp ao trabalho agora publicado se deu por meio de três projetos – um coordenado por Henrique de Melo Jorge Barbosa, professor do Instituto de Física (IF) da USP, outro por Paulo Artaxo, também do IF, e o terceiro por Machado.
Como explicou Barbosa, os dados usados no artigo foram coletados durante a estação chuvosa de 2014 – entre os meses de março e abril –, período em que a Amazônia está livre das queimadas e, portanto, em que a única fonte de poluição relevante é a cidade de Manaus.
“Manaus é uma cidade com cerca de 2 milhões de habitantes, mais de 500 mil veículos e abastecida por termelétricas. É, portanto, uma grande fonte poluidora cercada de floresta pristina. Nosso principal sítio experimental foi instalado em Manacapuru – cidade situada a 80 quilômetros da capital amazônica e que, alternadamente, recebe a pluma de poluição carregada pelos ventos alísios e também ar limpo da floresta”, disse Barbosa.
Com o auxílio de instrumentos capazes de medir a concentração de aerossóis na atmosfera e calcular o tamanho das partículas, bem como o de radares que medem o tamanho das gotículas de nuvem, a quantidade de chuva e a velocidade com que o vapor é levado da superfície terrestre para a nuvem, o grupo comparou como ocorria o processo de convecção (movimento vertical dos gases causado pela transferência de calor) e de formação de nuvens quando a pluma de Manaus estava ou não presente sobre Manacapuru.
“As partículas de aerossol são essenciais no processo de formação de nuvens porque são elas que oferecem uma superfície para o vapor d’água se condensar. As gotículas formadas pela condensação são pequenas, mas elas acabam colidindo umas com as outras e, assim, crescendo. As gotas aumentam de tamanho e, quando ficam pesadas o suficiente, precipitam”, explicou Barbosa.
Normalmente, apenas as partículas maiores do que 50 nanômetros atuam como núcleos de condensação de nuvens (CCN, na sigla em inglês). Segundo os pesquisadores, é mais fácil para o vapor se condensar nas partículas grandes por ser menor a menor tensão superficial, a força de atração entre as moléculas de água que permite aos mosquitos pousar na superfície de um lago.
“Em cidades mais poluídas, ou na época seca na Amazônia, há muitas partículas na atmosfera e, portanto, existe uma forte competição pelo vapor d’água que emana da superfície terrestre. Portanto, a população de gotículas que se forma tem maior número e menor tamanho do que teria se não houvesse poluição. Assim, ela demora mais tempo até crescer o suficiente para chover”, explicou Machado.
Por esse motivo, acrescentou o pesquisador, a nuvem acaba se desenvolvendo muito no sentido vertical e, como a parte de cima é mais fria, ocorre a formação de gelo. “A intensa formação de gelo favorece o desenvolvimento de tempestades, ou seja, de nuvens intensas com raios”, disse.
O processo descrito pelo pesquisador é conhecido pelos especialistas em clima como cloud invigoration, algo como intensificação da nuvem. O trabalho publicado na Science revelou que na região amazônica as nanopartículas também podem influenciar nesse processo, o que era desconhecido.
Como na floresta tropical a umidade relativa e a temperatura do ar são muito altas, e como há poucas partículas grandes na atmosfera no período chuvoso, o vapor em excesso acaba se condensando também nas nanopartículas e o processo de cloud invigoration ocorre na parte baixa da nuvem, onde a água está no estado líquido. Esse processo de formação de gotas de chuva libera calor latente que acelera o movimento vertical do ar, aumentando a intensidade da tempestade.
“Para se ter uma ideia, a velocidade do vento dobrava quando havia muitas nanopartículas na atmosfera”, disse Rodrigo Souza, professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) que também participou do estudo.
Trabalhos de modelagem foram feitos pelo grupo para confirmar a hipótese levantada com base nos dados atmosféricos coletados. O modelo atmosférico usado foi o Weather Research and Forecasting (WRF), um programa de última geração, mas que falhava em representar alguns aspectos importantes do ciclo hidrológico da Amazônia por ter sido desenvolvido com base em observações do hemisfério Norte.
“Foi preciso adaptar o modelo para a nossa região”, disse o professor Helber Gomes, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Preenchendo lacunas
“Nunca entendemos como podem ocorrer aguaceiros tão frequentes na Amazônia se a região tem tão poucos núcleos de condensação de nuvens – algo na ordem de 300 ou 350 partículas por centímetro cúbico [São Paulo, por exemplo, chega a ter de 10 mil a 20 mil]. Mas é porque nunca havíamos considerado o papel dessas partículas ultrafinas de aerossol”, comentou Artaxo, coautor do artigo.
De acordo com o pesquisador, a descoberta mostra que os cientistas que estudam as regiões tropicais não devem se basear apenas em conceitos desenvolvidos em países de clima temperado. “Precisamos olhar para as particularidades da Amazônia. É possível que no passado, quando a atmosfera global ainda não estava poluída pelas emissões humanas, esse fenômeno de intensificação de tempestades também ocorresse em outras regiões do planeta. Mas não sabemos ao certo e precisamos aprofundar as investigações”, disse Artaxo.
Na avaliação de Machado, os achados deverão alterar não apenas os modelos climáticos como também o modo como teorias são formuladas e dados atmosféricos são coletados.
“Agora que foi mostrada a importância das nanopartículas no processo de intensificação da chuva nunca mais vamos estudar as nuvens da mesma maneira. Isso modifica a forma de pensar todo o processo”, comentou.
O grupo ainda pretende trabalhar em novos dados e modelos para investigar até que ponto as conclusões válidas para a Amazônia podem ser extrapoladas para outras regiões do globo. “Sabemos que é preciso uma energia brutal para levar todo esse vapor d’água para 12 a 14 quilômetros de altura. Essa energia vem do sol e está disponível na Amazônia”, disse Artaxo.
O trabalho de coleta e análise dos dados contou com a participação de cientistas do Brasil, Estados Unidos, Israel, China e Alemanha. Parte das medidas foi feita com o avião americano Gulfstream-1 (G1), pertencente ao Pacific Northwest Laboratory (PNNL).
Também apoiaram a campanha GOAmazon a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DoE, na sigla em inglês), além de outros parceiros.
Realizado em 2014 e 2015, o experimento teve entre seus objetivos investigar o efeito da poluição urbana de Manaus sobre as nuvens amazônicas e avançar no conhecimento sobre os processos de formação de chuva e a dinâmica da interação entre a biosfera amazônica e a atmosfera. Com base nos achados, os pesquisadores pretendem estimar mudanças futuras no balanço radiativo, na distribuição de energia, no clima regional e seus impactos para o clima global (leia mais em: http://agencia.fapesp.br/18691).
O artigo Substantial Convection and Precipitation Enhancement by Ultrafine Aerosol Particles, de Jiwen Fan, Daniel Rosenfeld, Yuwei Zhang, Scott E. Giangrande, Zhanqing Li, Luiz A. T. Machado, Scot T. Martin, Yan Yang, Jian Wang, Paulo Artaxo, Henrique M. J. Barbosa, Ramon C. Braga, Jennifer M. Comstock, Zhe Feng, Wenhua Gao, Helber B. Gomes, Fan Mei, Christopher Pöhlker, Mira L. Pöhlker, Ulrich Pöschl e Rodrigo A. F. de Souza, pode ser lido em http://science.sciencemag.org/content/359/6374/411.
Por: Karina Toledo (Agência Fapesp).
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