Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, Amazonas. Foto: Vinícius Mendonça / Ibama / Wikimedia Commons.
Comércio internacional de itens como madeira, tabaco, cacau, café e algodão impulsiona o risco de malária nos países exportadores, relatam pesquisadores da USP e colaboradores na Nature Communications.
Estudo publicado na Nature Communications conecta pela primeira vez a demanda de certos países desenvolvidos por commodities agrícolas ao aumento do risco de malária em países fornecedores desses produtos.
O trabalho, conduzido por cientistas da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e colegas da Universidade de Sidney (Austrália), estima que cerca de 20% do risco de malária em hotspots de desmatamento é impulsionado pelo comércio internacional de itens como madeira, produtos madeireiros, tabaco, cacau, café e algodão.
A pesquisa abrange o período de 2000 a 2015 e foi desenvolvida no âmbito do projeto Genômica de paisagens em gradientes latitudinais e ecologia de Anopheles darlingi, apoiado pela FAPESP.
Para estabelecer a metodologia – que cruzou rotas comerciais mundiais com dados de perda de cobertura florestal em países exportadores de commodities agrícolas em que ocorre a doença – Maria Anice Mureb Sallum, professora da FSP-USP, e seu aluno de doutorado Leonardo Suveges Moreira Chaves, primeiro autor do artigo, tiveram a colaboração de Manfred Lenzen, professor da Universidade de Sidney, e de sua equipe.
“Lenzen mantém uma base de dados sobre comércio internacional que inclui 189 países e fontes como a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, entre outras. Há dados que nos permitem saber quem vende, o que vende, para onde vende, quem compra, quem beneficia e para onde é vendido o produto beneficiado. Por exemplo: um país que compra cacau, produz o chocolate e exporta para o mundo inteiro. Todos os elos da cadeia foram considerados”, explica Sallum.
De acordo com Leonardo Suveges, com o uso de computação de alto desempenho, a equipe de Lenzen examinou mais de 1 bilhão de rotas de suprimentos de commodities internacionais. “Como a malária está muito ligada à alteração da paisagem pelo desmatamento, que favorece a proliferação dos vetores e a exposição do homem a esses insetos, conseguimos atribuir uma parte dos casos de malária ao desmatamento – à qual chamamos risco de malária: quantos casos haveria na ocorrência de desmatamento e na ausência de intervenções de controle, como mosquiteiros impregnados com inseticida e tratamentos com medicamentos combinados com artemisinina. E uma parcela desse risco está associada ao comércio de commodities”, resume.
Os cientistas selecionaram então os países com casos de malária em que há hotspots de desmatamento e cruzaram com os dados da cadeia de produção de commodities associada ao desmatamento nesses lugares, verificando para onde os produtos são exportados. Concluíram que cerca de 10% do risco de malária ligado ao desmatamento está conectado a apenas 10 nações compradoras: Alemanha, Estados Unidos, Japão, China, Reino Unido, França, Itália, Espanha, Países Baixos e Bélgica, onde a demanda por determinados produtos pode estar exacerbando o risco de malária para 10,7 milhões de pessoas em países de baixa renda, principalmente em países da África Subsaariana.
O risco em números
A Nigéria sofre o maior risco de malária com conexões identificadas ao desmatamento: 5,98 milhões de casos em 2015, em parte causados pela exportação de madeira para a China (em um total de US$ 332 milhões em 2015), grãos de cacau para os Países Baixos (US$ 334 milhões), Alemanha (US$ 72 milhões), Bélgica, França, Espanha e Itália (US$ 35 milhões) e carvão para a Europa (US$ 35 milhões).
Em seguida vem a Tanzânia, onde 5,66 milhões de pessoas correm risco de malária relacionado ao desmatamento, em parte por conta das exportações de tabaco não beneficiado para a Europa e a Ásia (US$ 344 milhões), algodão cru para o sudeste da Ásia (US$ 41 milhões) e madeira serrada para a Índia (US$ 20 milhões).
Em Uganda, 5,49 milhões de casos de risco da doença estão associados ao desmatamento, potencialmente impulsionado pela exportação de café não beneficiado para a Itália (US$ 88 milhões em 2015), Alemanha (US$ 63 milhões), Bélgica (US$ 40 milhões) e EUA e Espanha (ambos US$ 21 milhões) e, em menor grau, de algodão cru para o sul e o sudeste asiáticos (US$ 15 milhões).
Em Camarões, também com 5.49 milhões de casos, parte do risco de malária atrelado ao desmatamento foi conectada à exportação de cacau para os Países Baixos (US$ 300 milhões), Espanha, Bélgica, França e Alemanha (que somaram US$ 79 milhões em 2015), madeira bruta para a China (US$ 175 milhões) e madeira serrada para o mesmo país, além de Bélgica, Itália, EUA e outros (somando US$ 440 milhões).
O artigo, intitulado Global consumption and international trade in deforestation-associated commodities could influence malaria risk, revela que os outros países com maior risco da doença atrelado ao desmatamento, em ordem decrescente, foram República Democrática do Congo, Índia, Zâmbia, Myanmar, República Centro-Africana e Burundi. Eles têm como maior parceiro comercial a China, para onde vendem sobretudo produtos madeireiros.
Em nota suplementar ao trabalho publicado, os autores calcularam ainda que as importações de commodities feitas pela China em 2015 responderam por 1,7 milhão de casos de malária nos países onde o desmatamento está ligado à sua produção e exportação. A Alemanha respondia por 1,5 milhão de casos, seguida do Japão (986 mil), dos Estados Unidos (770 mil), do Reino Unido (815 mil), da Itália (595 mil), dos Países Baixos (581 mil), da Espanha (466 mil), da França (463 mil) e da Bélgica (361 mil).
Compensação insuficiente
“Chama a atenção o fato de que Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e Japão, alguns dos principais importadores citados como corresponsáveis pelo risco de malária, são os mesmos países que fornecem apoio financeiro para programas de controle da doença, especialmente na África Subsaariana”, aponta Suveges.
Mas a conta não fecha. Em 2017, o investimento global para controle e prevenção da malária foi de aproximadamente US$ 3,2 bilhões, com doadores de alta renda fornecendo 72% do financiamento. No entanto, afirmam os cientistas no artigo, os países endêmicos de malária arcaram com 28% do custo e o nível geral de financiamento foi menos da metade do necessário para alcançar uma redução nas taxas de morbidade e mortalidade pela doença, de acordo com a meta 3.3 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos para 2030 pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Sallum ressalta o fato de que, durante todo o período estudado, os países produtores e exportadores de commodities permaneceram nessa posição. “Sabemos por estudos já publicados que os efeitos sociais do desenvolvimento econômico têm impacto sobre a malária, porque as pessoas conseguem morar melhor, ter condições mais dignas de manejo da terra e tudo isso consegue protegê-las. Assim, se o país produtor de commodities se tornasse o fornecedor de manufaturados, poderia agregar um valor maior ao produto dele e posicionar a sociedade em uma situação mais vantajosa – o que poderia diminuir a necessidade de desmatamento e o risco de malária. Mas não há variação de papéis nessa cadeia comercial, o que demonstra a desigualdade que impera nessas relações, tendo em vista que os preços das commodities são estipulados pelos países compradores.”
Por: Karina Ninni (Agência Fapesp).
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