A chegada da temporada de queimadas, o aumento do desmate e a crise da Covid-19 exigem senso de urgência para alavancar uma nova economia baseada nos ativos da biodiversidade.
Na temporada de clima seco que começa em junho e vai até outubro, na Amazônia, mais uma preocupação se soma ao desenrolar da Covid-19 pós-crise: as queimadas na floresta, que neste período devem voltar como destaque no noticiário nacional e internacional. Contra elas, entra em cena uma nova arma visível nos céus: um drone acoplado a um sistema inteligente de sensores, em desenvolvimento na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), promete processar dados como temperatura do fogo, gases, umidade do ar e velocidade dos ventos para subsidiar o planejamento e as decisões das brigadas no campo, com ganhos além dos ambientais.
A inovação ilustra o potencial de uma nova matriz econômica associada à manutenção da floresta em pé como fonte sustentável de riquezas, com possibilidade de melhoria também dos indicadores sociais – tema central do webinar Bioeconomia na Amazônia e o cenário Covid-19, realizado pelo Idesam em parceria com a Página22, no Dia Internacional da Diversidade Biológica (22 de maio). Na ocasião, a tecnologia voltada ao controle das queimadas foi apresentada como case de inovação que contribui para evitar, no futuro não muito distante, as imagens de árvores em chamas que preocupam o mundo diante da influência da região na mudança climática.
No ano passado, os satélites registraram quase 90 mil focos de incêndio na Amazônia, 30% mais do que em 2018, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – números relacionados ao aumento do desmatamento. “Além da maior agilidade e eficácia na prevenção de queimadas, a vantagem está no menor custo, obtido pela nacionalização da tecnologia”, afirma o biólogo Jair Maia, pesquisador da UEA que adapta às novas demandas o trabalho com drones antes utilizados no estudo da copa das árvores.
Junto ao casal Patrícia e Guilherme Guimarães – ela, doutora em clima e ambiente; ele, dedicado à engenharia de software –, Maia soma expertise para testar o primeiro protótipo em campo, em parceria com a Defesa Civil, no município de Humaitá (AM), durante a nova temporada de queimadas que se aproxima. Posteriormente, o plano é aperfeiçoar o equipamento em novas versões para que incorpore Inteligência Artificial, seja operado em centrais de comando à distância e ganhe maior espectro de aplicações, inclusive na agricultura de precisão e controle da qualidade do ar em fábricas, expandindo-se no mercado como um negócio baseado em soluções a favor da sustentabilidade.
Há avanços na legislação e novos arranjos institucionais de apoio para que histórias assim se repliquem, atraiam mais investimentos e alcancem escala proporcional ao desafio de unir a agenda econômica à ambiental, na Amazônia. “Mas é preciso conectar institutos de pesquisa e tecnologia ao atual sistema de fomento à bioeconomia, preparando-os para atendimento às necessidades das empresas em novos produtos, processos e serviços com visão de mercado”, afirma Carlos Gabriel Koury, diretor técnico do Idesam, instituição que coordena o Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio), vinculado à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa).
O encontro da informática com a biotecnologia
O mecanismo pelo qual o sistema com drone antiqueimada recebeu investimentos para tomar impulso inicial foi lançado há um ano e meio. Prevê o repasse de recursos por empresas do Polo Industrial de Manaus obrigadas pela Lei de Informática a destinar 5% do faturamento à pesquisa tecnológica, fatia que representa R$ 700 milhões ao ano e estava restrita às inovações do mundo digital.
A partir de agora, o montante – contrapartida das empresas do setor pelos incentivos fiscais que recebem – poderá beneficiar também a biotecnologia. Entre os sete eixos tecnológicos do PPBio aptos a acessar parte desses valores, estão a prospecção de princípios ativos, a bioinformática, o tratamento biológico de resíduos e os negócios de impacto ambiental e social – apoio que pode ocorrer por meio de diferentes modelos de parceria.
Algumas empresas de informática investidoras (indústrias de celulares, computadores, tablets, periféricos, e eletroeletrônicos) almejam apenas visibilidade institucional ao patrocinar o uso sustentável dos recursos naturais na Amazônia; outras buscam soluções voltadas à utilização de bioinsumos e a processos internos de menor impacto ambiental, como substituição de fontes energéticas sujas, além de acesso a ferramentas de gestão em sustentabilidade. Há, ainda, a modalidade de participação acionária em negócios inovadores de startups como forma de diversificar a carteira de investimentos e, desta forma, ampliar alternativas diante de novas demandas de mercado.
“Podemos fomentar cadeias produtivas de espécies amazônicas, como o açaí e a andiroba, mas também o ecossistema de serviços para que elas se desenvolvam, incluindo soluções para superar os desafios logísticos, por exemplo”, explica Koury.
No primeiro ano, o PPBio recebeu 73 projetos de universidades e centros de pesquisa para apresentação a companhias de informática do Polo Industrial de Manaus. Até o momento, por meio dessa ponte unindo desenvolvimento de tecnologia e empresas investidoras, foram captados R$ 9,5 milhões. Entre os projetos beneficiados estão os produtos à base de açaí e copaíba da nova linha de creme facial Energetic Face, da marca de cosméticos naturais Simbioze Amazônica, mantida por uma startup instalada no Centro de Incubação e Desenvolvimento Empresarial (Cide), em Manaus. A novidade tem o selo Halal para venda ao mercado árabe.
A expectativa agora é avançar em tecnologias baseadas em insumos da biodiversidade e soluções customizadas para enfrentamento à Covid-19 na Amazônia Ocidental e Amapá, região de influência da Zona Franca, e ajudar na qualidade de vida pós-crise, conforme portaria específica recentemente publicada pela Suframa, com regras facilitadas frente a situação de emergência.
Nove projetos foram cadastrados até o início de junho e a previsão é chegar a um investimento entre R$ 30 milhões e R$ 50 milhões até o final do ano – recursos também oriundos da Lei de Informática. “É lamentável dar marcha ré e discutir o desmatamento como entrave à bioeconomia, apesar das leis e mecanismos de fomento existentes”, ressalta Koury, para quem o papel das empresas é fundamental no momento.
Na direção de uma nova economia
Como fomentar negócios que, além de gerar emprego e receita, consigam criar soluções permanentes para os problemas sociais e ambientais mais urgentes da Amazônia? Um debate que se arrasta por décadas, desde a concepção do conceito de desenvolvimento sustentável, pode ganhar novo impulso na expectativa das lições aprendidas na pandemia de coronavírus, no sentido de um olhar global mais atento à saúde e ao meio ambiente – apesar das controvérsias em torno da agenda federal brasileira no setor.
O Brasil é um dos únicos, senão o único país do mundo que aumentou gases de efeito estufa na retração econômica da pandemia, e isso ocorreu devido ao desmatamento em expansão. A mudança de uso da terra responde por cerca de 70% das emissões brasileiras – e, de acordo com analistas, a tendência pode se agravar. “A crise da mudança climática nos coloca em situação de encruzilhada: como desenvolver a economia e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem na Amazônia sem promover a degradação que hoje marca basicamente todas as atividades rurais na região?”, questiona Mariano Cenamo, diretor de novos negócios do Idesam.
Ele cita movimentos que buscam quebrar esse ciclo, “fazendo a floresta render e não somente custar”, a exemplo da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA). Mantida por empresas e organizações da sociedade civil, a iniciativa abrange o maior programa de aceleração de negócios de impacto da Região Norte, com 30 startups em carteira, 12 beneficiadas por investimentos para decolar no mercado.
No entanto, para Denis Minev, CEO do Grupo Bemol, em Manaus, as condições atuais que incentivam o desmatamento ilegal tornam a bioeconomia, “um sonho no curto prazo; uma perspectiva viável no horizonte de pelo menos uma década”. De acordo com o empresário, atuante investidor de negócios de impacto ambiental e social na Amazônia, “a única alternativa é sermos inteligentes o suficiente para construir um sistema próspero sob o ponto de vista econômico e social, sustentável e politicamente equilibrado”.
Neto do professor Samuel Benchimol, um visionário do desenvolvimento da região, Minev diz que a bioeconomia que vai enriquecer e transformar a Amazônia não é propriamente a do extrativismo, mas a do conhecimento. Ele aponta quatro vetores essenciais: disponibilidade de insumos naturais, leis e instituições maduras para uso desses recursos, financiamento e capital humano capacitado para a biotecnologia do século XXI. “Precisamos entrar nesse jogo no nível mundial”, reforça.
Na sua visão, a atual crise da pandemia colocará essa capacidade à prova. Minev alerta para o colapso dos orçamentos estaduais, com estimativa de queda de 30% a 40% e possível impacto nos investimentos ambientais públicos, embora grande parte dos recursos aplicados pelo governo do Amazonas no setor tenha como origem doações internacionais. “É preciso barrar a destruição, fazendo com que o desmatamento não seja rentável, mas o desafio esbarra na ilegalidade e informalidade reinantes na economia do interior”.
Pandemia e desmatamento
“O enfraquecimento da economia de Manaus pela Covid-19 está empurrando pessoas de volta às comunidades ribeirinhas, e precisamos observar atentamente como isso influenciará o desmatamento”, afirma o empresário. Segundo pesquisadores, o polo industrial estruturado há cinco décadas com incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus concentrou a economia na capital e, assim, mesmo que de forma não intencional e indireta, ajudou a evitar a degradação da floresta por atividades predatórias.
O pesquisador Henrique Pereira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no entanto, diz que “não serão os desempregados da capital que vão desmatar o interior, pois os agentes desse processo são outros”. Em alusão ao processo de grilagem, o coordenador do projeto Atlas ODS Amazonas, voltado a territorializar os indicadores da Agenda 2030 da ONU, aponta: “Ondas de maior intensidade do desmatamento estão diretamente relacionadas ao ambiente macroeconômico, com deslocamento de populações para uma fronteira a ser explorada, na busca por capitalização. O interesse econômico de derrubar está na terra e não na floresta”.
Para Pereira, o desafio de dar base econômica à biodiversidade requer maior atenção à aplicação de tecnologias, que nem sempre poupam recursos naturais, e a algumas questões conceituais. “De que estamos falando: de uma bioeconomia que utiliza formas de vida como modelo para desenvolver processos industriais ou de uma economia que usa a floresta como produtora de matéria-prima?”
Felipe Naveca, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia, cuja equipe foi responsável pelo sequenciamento do genoma completo do coronavírus na Região Norte, defende soluções baseadas nas realidades da região, com uma abordagem multidisciplinar em conjunto com físicos, engenheiros e outros especialistas, reduzindo a dependência externa de insumos estratégicos. “Se o Brasil não fizer”, alerta o virologista, “outros países o farão”.
Há necessidade de maior aproximação com a sociedade: “Para atrair investimentos na bioeconomia, a academia precisa fazer projetos que tenham uma aplicação mais fácil de ser entendida por quem pode financiá-los”. Para o pesquisador, outro desafio é aprender a divulgar esses produtos, de modo que a população reconheça a importância e os valores por trás deles, e assim a ciência chega à ponta final.
“Defendemos a desregulamentação ambiental em pontos que dificultam o uso sustentável desses recursos”, afirma Alcimar Martins, superintendente adjunto de planejamento e desenvolvimento regional da Suframa. Ele informa que o governo federal iniciará estudo sobre o potencial da bioeconomia amazônica e deverá assinar portaria abrindo espaço a novos investimentos no setor.
Dos R$ 700 milhões disponíveis pela Lei de Informática, a nova norma estabelece cerca de R$ 400 milhões por ano para capitalização de startups, organizações sociais com propósitos de inovação e projetos internos de sustentabilidade das empresas que poderão contemplar a biotecnologia, apoiada via PPBio. Caminhos começam a se abrir; falta garantir a existência de floresta para explorá-los.
Por: Sérgio Adeodato (Página 22).
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