Juliana (à esquerda) e sua irmã Luana, que foi reinfectada pelo SARS-CoV-2 quatro meses após se curar da COVID-19. Ao estudar o caso das gêmeas, pesquisadores da USP concluíram que a imunidade celular de Juliana era mais bem desenvolvida e a protegeu da reinfecção (foto: acervo pessoal).
Duas gêmeas idênticas que moram na mesma casa contraíram a COVID-19 e manifestaram sintomas leves, como febre, tosse e congestão nasal – sem necessidade de hospitalização. Quatro meses depois, em agosto de 2020, uma das irmãs foi reinfectada. Porém, dessa vez, desenvolveu um quadro mais grave, com queda na taxa de oxigenação sanguínea e necessidade de internação por dez dias, parte do tempo em unidade de terapia intensiva. A outra irmã, apesar de ter tido novo contato com o vírus, não foi reinfectada.
Parece apenas um acontecimento inusitado e fortuito, entre tantos relacionados à pandemia de COVID-19. Porém, ao detalhar pela primeira vez um caso de reinfecção em indivíduos com o mesmo genoma, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) conseguiram comprovar o papel essencial da resposta imune adaptativa (específica para cada patógeno) mediada por linfócitos T – também chamada de imunidade celular – para evitar a recorrência da doença.
“Era de se esperar que gêmeas idênticas apresentassem sintomas semelhantes. No entanto, identificamos um caso em que os resultados foram muito diferentes. Somente uma das irmãs teve reincidência de COVID-19 e apresentou uma resposta deficitária de linfócitos T específicos. No estudo, observamos que a resposta imune adaptativa pode ser diferente entre gêmeos monozigóticos [formados a partir do mesmo óvulo, fecundado por um único espermatozoide]”, afirma Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.
A descoberta relacionada ao papel dos linfócitos T na prevenção de reinfecções surgiu de uma pesquisa mais ampla sobre sistema imune com a participação de gêmeos idênticos. Os dados completos da pesquisa, que contou com apoio da FAPESP, foram divulgados na plataforma medRxiv, em artigo ainda sem revisão por pares.
Frentes de atuação
Como explicam os autores do estudo, o sistema imune conta com diferentes “frentes de atuação”. Ao lado de outras células de defesa – como macrófagos e neutrófilos –, os linfócitos T formam a complexa resposta do corpo humano contra vírus e outros patógenos.
Quando um vírus infecta uma pessoa e passa a se multiplicar dentro de suas células, ele desencadeia primeiro a resposta imune inata (inespecífica). Células chamadas de macrófagos identificam o vírus e o fagocitam. Há também a ação de proteínas chamadas interferons, uma espécie de “cadeado” que impede as células infectadas de replicarem o vírus.
Se a resposta imune inata não resolver o problema, entra em cena o sistema imune adaptativo, formado por anticorpos neutralizantes (resposta humoral) e pelos linfócitos T (imunidade celular), que reconhecem o patógeno e podem destruir as células infectadas.
Para descobrir por que a resposta das irmãs foi diferente, os pesquisadores realizaram uma avaliação abrangente da imunidade inata e adaptativa das gêmeas. Além de ensaios sobre a resposta inata relativa à produção de proteínas interferons do tipo 1 e 3, analisaram a resposta adquirida, que inclui a ligação e neutralização por anticorpos presentes no sangue e a resposta dos linfócitos T a peptídeos sintéticos de SARS-CoV-2.
“Ao analisar amostras de sangue das gêmeas, notamos que elas apresentavam condição semelhante da resposta inata de interferons do tipo 1 e 3, bem como de anticorpos – inclusive neutralizantes. A irmã reinfectada apresentava até uma quantidade maior de anticorpos, pois tinha acabado de ter a reincidência da infecção, mas havia uma diferença brutal em relação à resposta imune mediada por linfócitos T”, conta Edecio Cunha Neto, professor do Departamento de Clínica Médica e pesquisador do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Com o objetivo de aprofundar a análise, os pesquisadores compararam os resultados dos testes com amostras de sangue das irmãs com os de outro par de gêmeos idênticos que tiveram COVID-19 assintomática uma única vez (e serviram como grupo controle).
Dos 46 peptídeos – ou fragmentos do vírus SARS-CoV-2 – que os linfócitos T têm mais facilidade de reconhecer, as células da irmã reinfectada reconheciam apenas sete (15%), enquanto as de sua gêmea reconheciam 40 (87%). No outro par de irmãos (grupo controle) também houve variação, mas ambos identificaram quase 100%.
“Nossos achados reforçam que o repertório imune é definido somaticamente [por mutações ocorridas em estágios mais avançados do desenvolvimento] e respostas aleatórias individuais são produzidas independentemente do arcabouço genético, o que justifica perfis distintos observados em gêmeos monozigóticos. Ou seja, o repertório imune é desenvolvido a partir de sucessivas exposições a patógenos, fatores ambientais e genéticos que em conjunto fazem a resposta imune ser única em cada indivíduo", explica Mateus Vidigal de Castro, pós-doutorando no IB-USP e primeiro autor do estudo.
Pesquisadores em todo o mundo ainda têm pouco conhecimento sobre como se dá a reincidência de COVID-19. Antes do surgimento das novas cepas, a estimativa era de que esse tipo de evento acontecesse com uma a cada mil pessoas (1:1000). Mais raro ainda é a reincidência ocorrer e de forma discordante em gêmeos idênticos.
“Em casos de reincidência, o esperado é que a segunda resposta imune seja mais forte, pois o sistema imunológico tem por característica memória e especificidade. No entanto, a gêmea reinfectada teve uma resposta deficitária de linfócitos T, diferentemente de sua irmã. Essa disparidade entre pessoas com o mesmo genoma mostra que não só os anticorpos são de extrema importância para resposta contra a COVID-19”, diz Cunha-Neto.
Zatz destaca que a análise do caso das gêmeas abre caminho para mais estudos sobre imunidade e COVID-19. “O mais interessante é que o caso das gêmeas revela pistas importantes sobre a complexidade do sistema imune e também da COVID-19 para a população em geral.”
Vacinas e variantes do vírus
Outro aspecto importante da pesquisa está em reafirmar a noção de que quanto mais imunogênica for uma vacina, ou seja, quanto mais ela ativar a resposta imune das diferentes células e proteínas do sistema imune, melhor.
No caso das gêmeas, tanto a infecção quanto a recorrência da doença aconteceram no ano passado, quando ainda não haviam surgido as variantes mais transmissíveis. Ainda assim, os pesquisadores ressaltam a importância dos linfócitos T na proteção contra as novas cepas.
“Há uma crescente preocupação de que novas variantes do SARS-CoV-2 sejam capazes de evitar a ação de anticorpos neutralizantes induzidos tanto pela vacinação quanto por infecção prévia. Nosso estudo enfatiza a importância da imunidade celular na proteção contra recorrências e reinfecções para a população em geral”, diz Cunha-Neto.
Segundo o pesquisador, estudos recentes mostram que a resposta imune mediada por linfócitos T é menos afetada pelas novas variantes do que a resposta humoral. “Isso pode sugerir que a proteção conferida pela resposta celular induzida pelo vírus original ou pela vacina seja eficaz contra as novas variantes.”
O artigo Monozygotic twins discordant for severe clinical recurrence of COVID-19 show drastically distinct T cell responses to SARS-Cov-2 pode ser lido em www.medrxiv.org/content/10.1101/2021.03.26.21253645v1.
Por: Maria Fernanda Ziegler (Agência Fapesp).
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