O problema não está em inovar a estética do vestir – mas em submeter-se à tirania do mercado e das marcas. Desde minha infância pensava em moda. No que vestir para determinada ocasião e também em como poderia brincar com as roupas de meu armário para denunciar, silenciosamente, meu humor e exercitar comportamentos adultos através do faz de conta.
Não foi à toa que meu primeiro livro infantil lançado em 2011 Vestidos para lembrar e uma história para contar, pela Estação das Letras e Cores, trouxe não só a lembrança daquele vestido amarelo de casinha de abelhas, que usei no meu aniversário de seis anos, mas também a lembrança de minha avó e de todas as meninas da família, que desejavam fazer seis anos para usar o mesmo vestido, que brincava de roda, na certeza de que as conquistas da prima mais velha seriam herdadas também. O desejo não era pelo novo, mas pelo antigo que narrava uma história.
E quem não tem uma história envolvendo uma peça de roupa? Roupas narram emoções funcionando como uma segunda pele que cobre nossos desejos ajudando a tecer a memória pessoal e também a vestir os objetivos estéticos, políticos e culturais de diferentes épocas. As roupas se situam no limite entre o público e o privado. Toda roupa tem uma história e cada história é um discurso que se mistura e se reconstrói com outros em diferentes momentos. Hoje a moda se massificou e arrebatou todas as camadas sociais e faixas etárias incluindo a infância. Todos desejam e usam as mesmas marcas e modas que nos são vendidas como símbolo de status. A moda está por toda parte: na mídia, nas ruas, vitrines, revistas e até nos museus. Mas, talvez, por seu caráter fugidio e de conotação fútil, a moda ainda não virou tendência, ou melhor, não entrou na moda das cabeças pensantes.
E moda não é simplesmente estar na moda, ou seja, não é só seguir os padrões estéticos e de consumo ditados pelas vitrines e peças publicitárias. A moda é muito mais do que isto; é um sistema extremamente complexo que envolve as gírias, o vestuário e a música os integrando a um contexto maior, político, social e cultural. Desta forma, podemos dizer que basta observarmos a moda circundante para termos pistas de hábitos e valores de nosso tempo. Sendo assim, ela não pode ser excluída dos fenômenos culturais, assim como não podemos negar sua importância para o entendimento da sociedade de consumo e inclusive da infância e juventude contemporânea.
Por mais difícil que seja pensarmos em uma sociedade sem moda em nosso mundo globalizado, a moda não é algo universal tendo local e data de nascimento. Como disse Lipovetsky, talvez o mistério da moda esteja exatamente aí, na unicidade de um fenômeno que emergiu e se instalou no Ocidente Moderno e em nenhuma outra parte ou época, pois apesar de o homem ter tido sempre o desejo estético de comunicação e diferenciação pelo adorno foi somente quando o gosto pelas novidades e o culto ao individualismo se tornaram constantes que a moda pegou.
Já o conceito de infância também não é natural e sim construído sócio-historicamente. Ou seja, cada época e cultura vão proferir um discurso sobre a infância que vai ajudar a moldar e construir a infância da época, assim como refletir seus ideais e expectativas em torno das crianças demarcando o lugar social delas. Antigamente a infância era vista como um período de transição, logo ultrapassado e sua lembrança perdida. O traje de épocas antigas comprova como a infância tinha pouca atenção nesse momento histórico, pois na Idade Média, por exemplo, não existia uma roupa que diferenciasse adultos de crianças. O uso do traje diferenciado foi, portanto, aceito somente por volta do século XVI, marcando um período importante – em que a vestimenta veio ajudar a separar crianças de adultos, além de definir um espaço social para elas.
Nos dias de hoje as crianças, emergentes na cultura do consumo — e ai inclui-se também o consumo de moda — adquiriram uma visibilidade social até então desconhecida. Elas não são mais sujeitos invisíveis por não poderem trabalhar ou produzir. As crianças ganharam visibilidade porque podem consumir e consomem todo tipo de objetos e serviços especializados incluindo moda. A criança se transformou em cliente vip e assim, o mercado tem sua atenção focada nesse consumidor mirim ou em suas famílias criando desejos de diferenciação. Um bom exemplo são as roupas de adulto hoje vendidas em tamanho reduzido como sapatos de salto a partir do numero 23 ou sutiens com bojo para meninas de 6 anos — o que merece nossa reflexão urgente. As crianças se desenvolvem no contato com a cultura que as circundas e ai incluem-se objetos e também roupas. Atualmente existem inclusive revistas, desfiles em semanas de moda e blogs especializados na moda para esse público mirim, que cresce rapidamente tendo que descartar as roupas, muitas vezes intactas.
Sabe-se que a infância e adolescência são fases de formação da identidade. Nesse momento o grupo social tem um enorme valor para os pequenos e para os jovens que desejam, antes de mais nada, ser aceitos e reconhecidos. E atualmente, na sociedade de consumo, muito mais pelo que têm do que pelo que são e que é ai que mora o perigo. Desde cedo as roupas e principalmente as marcas têm entrado na vida de nossas crianças e adolescentes ditando valores. O que é consumido não é somente um jeans ou um sapato, mas um signo social. Quando são pequenas a associação geralmente feita é com os personagens famosos licenciados. Ao entrar na adolescência as marcas ganham força como tatuagem e símbolo de status. Fica a reflexão: Até quando vamos deixar o poder das roupas e das marcas massificar os desejos de diferenciação de nossas crianças e jovens?
Moda pode ser um discurso poderoso e criativo desde que tenhamos espaço para o exercício da liberdade. Uma ideia que poderia virar tendência entre as famílias, além de começar a repensar o lugar que a moda ocupa nas suas vidas e de seus filhos, é ajudar as crianças e jovens a pensar num consumo mais colaborativo onde roupas antigas, em seus armários, possam ganhar novos donos e significados quando doadas, trocadas ou até reinventadas. Trocar, doar e reinventar roupas, através de customização, deveriam entrar na moda e nos armários das famílias contemporâneas. Quem já pensou que uma meia velha pode, quando cortada, virar luvas de princesas para brincadeiras de crianças? Ou calcinhas antigas que se transformam em toucas… Enfim a ideia é dar asas a nossa imaginação: sensibilizar os pequenos para o fato de que a moda pode ser única, além de um discurso poderoso e uma das formas de nos diferenciarmos na multidão das cidades contemporâneas, para mostrarmos quem realmente somos socialmente.
E além do papel das famílias, vale destacar que o mercado de moda infantil tem hoje a responsabilidade de um novo olhar sobre as crianças para criar e produzir roupas que respeitem suas necessidades e sua fase de desenvolvimento. Ao olhar e escutar a cultura da infância e assim fazer uma criação estética e eticamente mais cuidadosa com o universo infantil, a moda poderia cumprir a função social de contribuir para uma representação mais adequada e responsável da infância — sem apelos para o consumo em excesso e sem reflexão.
Por: Laís Fontenelle Pereira. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio.
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