Foto/Divulgação: Governo do Sergipe.
Se o vazamento de óleo que atinge as praias do Nordeste tivesse ocorrido no início do século 19, navegadores que viajavam entre o Brasil e a África seriam capazes de palpitar sobre o local de origem do incidente.
Cartas náuticas daquela época já descreviam as principais correntes marítimas que operam na região — e que explicam o caminho percorrido pelo óleo até as praias brasileiras, no maior acidente a atingir o litoral do país em extensão.
As correntes permitiram que o Brasil dominasse o tráfico negreiro no Atlântico. Sozinho, o país recebeu 4,8 milhões de africanos escravizados, dez vezes mais do que os Estados Unidos e quase a metade de toda a população transportada à força para as Américas em quatro séculos.
E, se no passado as correntes favoreceram a economia escravocrata, hoje elas deixam a costa brasileira vulnerável a acidentes que ocorram a milhares de quilômetros, à medida que a extração de petróleo se expande no Golfo da Guiné, no litoral africano.
A força da Corrente Sul Equatorial
Quando as manchas de óleo já se espalhavam por nove Estados, no início de outubro, o professor de Oceanografia da Universidade de São Paulo (USP) Ilson Silveira fez uma simulação para tentar identificar o local do vazamento.
O experimento apontou que o óleo havia entrado em contato com o oceano a uma distância entre 400 e 1.000 km da costa brasileira. De lá, teria sido transportado pela Corrente Sul Equatorial, um gigantesco rio que corre no Atlântico Sul no sentido leste-oeste. A corrente, que tem quatro ramos, se inicia no Golfo da Guiné, na costa ocidental da África, e vai até o litoral do Brasil.
"Desde o início percebi que a dimensão do acidente só se explicava por um grande sistema de correntes", diz Silveira à BBC News Brasil.
A simulação do professor também indicou que o vazamento ocorrera em latitude próxima às dos Estados de Pernambuco e Paraíba. Ao chegar ao litoral brasileiro nessa latitude, a Corrente Sul Equatorial se bifurca. Um ramo dela se torna a Corrente Norte do Brasil e sobe a costa, rumo ao Amapá, enquanto o outro ramo vira a Corrente do Brasil e desce o litoral, rumo ao Rio Grande do Sul.
Isso explicaria a chegada do óleo tanto a Estados ao norte da bifurcação (Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão) quanto a Estados ao sul (Alagoas, Sergipe e Bahia). Não por acaso, as primeiras manchas de petróleo apareceram justamente na Paraíba, onde se dá a bifurcação.
Por essa lógica, se o vazamento tivesse ocorrido um pouco mais ao norte ou um pouco mais ao sul, dificilmente atingiria todos os Estados do Nordeste. E se tivesse acontecido perto da costa, o óleo perderia o impulso da bifurcação e avançaria só para o norte ou para o sul, a depender do local da ocorrência.
A hipótese do professor Ilson Silveira foi reforçada na semana passada, quando a Polícia Federal divulgou dados de um relatório produzido pela empresa Hex Tecnologias Geoespaciais. Imagens de satélite coletadas pela empresa mostraram o que seria uma mancha original de petróleo a 733 km do litoral paraibano — dentro, portanto, do perímetro e da latitude calculados pelo pesquisador.
A influência das correntes na formação do Brasil
A bifurcação da Corrente Sul Equatorial justifica o esforço dos holandeses para controlar o arquipélago de Fernando de Noronha no século 17. No livro O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos 16 e 17, o historiador Luiz Felipe de Alencastro diz que o arquipélago "era a ponte para duas estratégicas rotas de ataque" às bases portuguesas nas Américas.
Uma dessas rotas ia do norte do litoral nordestino até o Caribe, e a outra descia toda a costa brasileira. A bifurcação também explica a decisão da Coroa portugesa de dividir o Brasil em duas unidades administrativas: ao norte dela ficava o Estado do Grão-Pará e Maranhão, e, ao sul, o Estado do Brasil.
As correntes antagônicas tornavam quase impossível realizar viagens marítimas entre os dois Estados. Alencastro cita o isolamento que o padre português Antonio Vieira sentiu durante uma estadia no território ao norte: em uma carta de 1654, ele escreveu que "alguém mais facilmente navega da Índia a Portugal do que desta missão (Maranhão) para o (Estado do) Brasil".
Missionários e autoridades que quisessem ir da Bahia até São Luís ou Belém costumavam primeiro viajar até Lisboa e só de lá partiam para o Grão-Pará.
Tentativas de contornar as condições naturais resultaram em fracassos notáveis. Alencastro conta que, no século 19, um navio da Marinha deixou o Rio de Janeiro carregado de soldados na expectativa de chegar ao Maranhão para conter a Revolta da Balaiada. A embarcação enfrentou fortes correntes contrárias e foi forçada a aportar em Montevidéu, no Uruguai, centenas de quilômetros ao sul do ponto de partida.
As correntes explicam por que, desde o surgimento das primeiras manchas, o professor Ilson Silveira descartou que o óleo tivesse vazando diretamente de alguma plataforma na Venezuela. Afinal, a Corrente Norte do Brasil vai do Rio Grande do Norte até a Venezuela, no sentido contrário ao da propagação das manchas.
Trocas entre Brasil e África
A lógica das correntes também influenciou o desenvolvimento econômico dos territórios brasileiros num momento em que o tráfico de africanos escravizados era um dos pilares da economia nacional.
As viagens dos navios negreiros até o Estado do Grão-Pará e Maranhão eram triangulares. As embarcações costumavam partir de Lisboa rumo à atual Guiné-Bissau e, de lá, viajavam com escravos até o Maranhão, de onde voltavam a Portugal carregados com drogas do sertão (produtos florestais).
As trocas entre a África e o Estado do Brasil, porém, dispensavam a escala em Portugal. Segundo Alencastro, por causa das condições naturais favoráveis, viagens de ida e volta entre a África e os portos brasileiros ao sul de Recife eram 40% mais curtas do que deslocamentos entre o continente africano e portos no Caribe ou nos Estados Unidos, outros importantes destinos de africanos escravizados.
Enquanto a Corrente Sul Equatorial facilitava o trajeto África-Brasil, outras condições naturais favoreciam a viagem de volta. Para chegar à costa africana, os navios luso-brasileiros podiam pegar carona no anticiclone de Santa Helena, uma zona de alta pressão atmosférica que opera como uma grande roldana, com os ventos soprando em espiral. Podiam ainda pegar a Contracorrente Sul Equatorial, um canal que corre no sentido contrário à Sul Equatorial, entre os dois ramos austrais da corrente.
"A relativa segurança e facilidade como se navegava da costa brasileira ao golfo de Guiné ou Angola permitia que navios de pequeno porte, como as escunas de dois mastros que navegavam no rio São Francisco, empreitassem viagens negreiras", escreve Alencastro.
Tanto assim que, quando o Brasil se tornou independente, em 1822, comerciantes de escravos em Benguela, na Angola atual, iniciaram um movimento separatista para tentar se integrar ao país do outro lado do Atlântico. Na época, duas das principais rotas no comércio transatlântico de escravos uniam Brasil e África: a maior delas, entre Luanda e Rio de Janeiro, e a rota entre Salvador e o Golfo da Guiné, com escala na ilha de São Tomé.
Segundo Alencastro, as correntes também ajudam a explicar por que a escravidão de indígenas nunca alcançou a mesma dimensão que a dos africanos no Brasil.
"Mesmo que todos os ameríndios da Amazônia aparecessem acorrentados nas margens do Pará e do Maranhão para se entregar", diz o historiador, os ventos e as correntes continuariam a bloquear seu transporte até os principais mercados em Pernambuco, na Bahia e em São Paulo. "Já as travessias Brasil-Angola eram 'quase sempre acompanhadas por bom tempo ou por muito poucos distúrbios no mar e ventos'", como escreveu em 1799 o governador de Angola.
Vazamentos no futuro?
Essas correntes marítimas que favoreceram a navegação entre Brasil e África no tempo da escravidão hoje tornam o Brasil vulnerável a vazamentos de petróleo que ocorram a milhares de quilômetros da costa brasileira, perto do litoral africano.
A extração do petróleo em plataformas marítimas é atualmente a principal atividade econômica de vários países do Golfo da Guiné, entre os quais Congo, Gabão e Guiné Equatorial. Espera-se que a produção cresça ainda mais conforme tecnologias de extração em águas profundas, como as adotadas pelo Brasil no pré-sal, se expandam pela região.
O professor Ilson Silveira diz que, em tese, a força das correntes marítimas pode fazer com que o litoral brasileiro seja afetado por vazamentos nessas plataformas no futuro. Nesse caso, porém, diz que o óleo provavelmente chegaria à costa brasileira "bastante intemperizado" (desfigurado pelas intempéries enfrentadas no trajeto).
Talvez antevendo possíveis problemas desse gênero, a Marinha brasileira tem se aproximado de nações africanas no Atlântico Sul. Desde o início da década, forças navais brasileiras e africanas vêm realizando vários exercícios conjuntos. Oficiais da Marinha costumam dizer que a distância entre Natal e Dacar, a capital do Senegal, é menor que a linha que une os pontos extremos do Brasil, o que tornaria os países africanos tão importantes para a defesa marítima nacional quanto as nações sul-americanas.
No fim de outubro, a força naval brasileira participou pela primeira vez da Comissão Grand African Nemo, operação que agrega os 16 países do Golfo da Guiné e que, nesta edição, também teve entre os convidados Bélgica, Estados Unidos, França e Espanha.
Segundo uma nota divulgada pela Marinha, um dos objetivos do exercício foi justamente "adestrar as Marinhas amigas dos países africanos da costa ocidental" para incidentes no Golfo da Guiné, o que inclui o "combate à poluição no mar".
Por: João Fellet (BBC News Brasil).
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