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Ruas Completas e Psicologia: Como o Ambiente Influencia Nosso Comportamento

Rua completa em Porto Alegre: intervenções bem planejadas podem melhorar a relação das pessoas com o ambiente e promover o bem-estar. Foto: Daniel Kener Neto

O ambiente afeta o comportamento, assim como o comportamento afeta o ambiente. Essa é uma das principais proposições da psicologia ambiental, área que estuda a inter-relação entre o comportamento humano e o ambiente que o circunda, seja ele construído ou natural. Se o ambiente tem o poder de influenciar nossas escolhas e hábitos, então é possível planejá-lo para que incentive escolhas mais sustentáveis. E as Ruas Completas oferecem uma forma de fazer isso. 

Zenith Delabrida, professora da Universidade Federal de Sergipe, psicóloga e pesquisadora da área de psicologia ambiental, falou em detalhes sobre como se dá essa relação. O campo de estudos da psicologia ambiental, conforme explica a especialista, tem o objetivo de entender a relação pessoa-ambiente e, a partir disso, pensar em como promover mudanças, ou no ambiente ou no comportamento, que contribuam para o bem-estar das pessoas. “Não é possível entender os seres humanos sem compreender seu contexto”, afirma Zenith. “Na psicologia ambiental, analisamos a relação pessoa-ambiente a partir da perspectiva do indivíduo inserido em determinado contexto social e procuramos entender o que é preciso fazer para que as pessoas tenham uma relação positiva com seu entorno”. 

Como se constitui a relação entre pessoa e ambiente, como podemos planejar os espaços públicos considerando a influência que exercem sobre o comportamento humano e como as Ruas Completas podem ser uma solução nesse sentido foram os temas abordados pela professora, e os quais aprofundamos neste artigo. 

Da consciência à inconsciência: a influência do ambiente no comportamento 

Podemos considerar que a ação das pessoas no espaço em que vivem se dá por dois caminhos: o primeiro, quando o indivíduo age sobre a realidade, e o segundo, quando é a realidade do espaço que determina as escolhas do indivíduo. Um exemplo que ilustra essa situação é o uso da bicicleta. Muitas pessoas tendem a usar a bicicleta apenas como opção de lazer por questões de segurança. A escolha é feita porque, em geral, os espaços em que precisariam pedalar nos deslocamentos casa-trabalho não oferecem a segurança necessária. Temos, nesse caso, uma situação em que as condições do ambiente determinam o comportamento das pessoas. 

Transferida para o planejamento urbano, essa é uma questão crucial. “Essas perspectivas ajudam a entender o grau de consciência do indivíduo nas escolhas do dia a dia. A tomada de decisão não é tão simples quanto imaginamos. E a diferença entre poder agir sobre uma dada realidade ou a realidade determinar nossas escolhas é muito importante”, reforça a especialista. Diante disso, é fácil perceber como as características físicas e estruturas presentes no meio urbano podem determinar muitos de nossos hábitos e comportamentos. Se temos o objetivo de incentivar a mobilidade ativa, o ambiente precisa influenciar essas escolhas. Ao planejarmos uma intervenção, como uma rua completa, as mudanças precisam ajudar as pessoas a fazer escolhas mais sustentáveis. 

Psicologia ambiental e Ruas Completas 

O ambiente físico pode potencializar ou inibir diferentes atividades. O planejamento dos espaços urbanos ou de intervenções como as feitas em projetos de Ruas Completas precisa considerar os usos existentes e desejados para a rua, o contexto em que a rua está inserida, os desejos e necessidades das pessoas que vivem ou circulam no local. Todas essas variáveis ajudam a determinar a chamada “vocação da rua”, elemento fundamental para que se estabeleça uma relação positiva entre pessoas e ambiente. 

Para fazer essa análise à luz do conceito de Ruas Completas, explica Zenith, “uma das primeiras coisas que precisamos considerar é o tipo de atividade que é realizado na rua – quem são as pessoas, que ambiente físico é aquele e o que acontece na confluência entre os dois”. A seguir, apresentamos a análise feita pela especialista, relacionando conceitos da psicologia ambiental com os objetivos de projetos de Ruas Completas

1. Respeitar e responder aos usos existentes de cada região, assim como aos usos planejados para o futuro | Está ligado ao conceito de territorialidade, que é a relação entre o grupo social a que pertencemos e o ambiente onde esse grupo está. Ao fazer parte de um grupo – moradores de um bairro ou de uma rua, por exemplo –, criamos um território ao qual esse grupo pertence e passamos a ter uma perspectiva de gestão desse espaço. Entender como o espaço foi planejado e construído e como é utilizado ajuda a evitar conflitos e a pensar nos usos para o futuro. “A dinâmica social é rápida e fluida, e os conflitos são inevitáveis, mas quanto mais os usos desse espaço forem claros, menor a chance de conflito”, avalia Zenith

2. Priorizar os deslocamentos realizados por transporte coletivo, a pé e de bicicleta | Aqui, nos vemos diante de uma variável essencial: segurança. A violência compromete o tecido social, violando acordos fundamentais, como a integridade física das pessoas e a integridade patrimonial. “Para promover essas formas de deslocamento, que colocam a pessoa mais em contato com a rua e o ambiente, é indispensável levar em consideração a variável da segurança”, comenta a professora, “o que também nos coloca as questões de gênero – as mulheres são mais vulneráveis – e de infraestrutura, que pode favorecer a violência ou ajudar a inibi-la”. 

3. Respeitar a escala das construções e recuos | Esse objetivo está ligado à relação entre público e privado. “Na nossa cultura, temos a tendência de entender tudo como privado”, Zenith avalia. “Se há uma área verde pública em frente ao portão, por exemplo, o proprietário tende a avançar com o portão para ocupar a maior área possível. Esse padrão é muito presente em Brasília”, completa. Na avaliação da especialista, para implementar um projeto de Ruas Completas, é preciso entender as normas vigentes nesse sentido e como o contexto social apreende essas normas. 

4. Apoiar a diversidade de usos do solo, mesclando residências, comércio e serviços | Aqui temos o encontro com o conceito de cidades para pessoas, que vem da arquitetura mas também é utilizado na psicologia ambiental. “Isso se dá a partir do entendimento do espaço da rua como microterritório. Para promover a diversidade de usos, um projeto precisa respeitar e aproveitar esses microterritórios que já existem”, pontua a professora. Além disso, é necessário também acompanhar e avaliar os impactos das mudanças feitas: “Uma vez que uma mudança é feita em determinado contexto, essa mudança é absorvida – mas também pode e deve ser alterada, caso se entenda que não foi bem-sucedida”. É a proposta das Ruas Completas: diagnosticar, implementar a mudança, testar, avaliar e fazer os ajustes necessários. 

5. Tornar a rua um lugar de permanência das pessoas e não somente de passagem | Esse objetivo é possível quando o ambiente oferece as condições para que diferentes tipos de atividades aconteçam na rua. “Para que as ruas sejam locais de convivência, que geram essa sensação de bem-estar, é preciso garantir que o ambiente seja favorável a elas. Pessoas atraem pessoas. Quando entendemos o papel do ambiente físico em proporcionar essa interação entre as pessoas, entendemos como essa interação é positiva para o ambiente”, avalia Zenith

6. Envolver moradores e grupos da comunidade para entender o bairro e suas prioridades | Por fim, o sexto objetivo está diretamente relacionado aos processos de construção da identidade – o sentimento de pertencimento e ligação ao lugar. Quanto maior a identificação das pessoas com o lugar onde vivem, explica Zenith, maior a chance de apropriação e cuidado: “Quanto esse espaço está ligado à minha identidade? Para um lugar fazer parte da nossa identidade, precisamos realizar atividades ali”. Essa é uma variável potente para o planejamento de intervenções como as das Ruas Completas – as mudanças precisam estar alinhadas aos valores das pessoas que vivem naquele ambiente e à relação existente entre ambas as partes.

Por: Priscila Pacheco (WRI Brasil).

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